Uma chamada da minha mãe em pânico levou-nos a correr ver o que se passava. Quando lá chegamos meu pai, com ar angelical, não percebia a agitação à sua volta. Enquanto um tentava acalmar o choro compulsivo da minha mãe, tentava eu junto do meu pai entender o que tinha ocorrido. Perguntei: "Porque chora a mãe, pai..." E de olhos cândidos como um menino que tem medo de uma repreenda, responde: "Ela não me deixa fazer nada..."
Percebi que havia mais, muito mais para dizer e era preciso acalmar a minha mãe para poder entender alguma coisa. Com canivetes e tesoura na mão, minha mãe soltou uma frase desesperada: " Ele quer cortar a barriga!!" Com toda a calma puxei-o para mim, abracei-o enquanto lhe dava um beijo no rosto e perguntei: " Ó pai, porque queres cortar a barriga?" E como um menino a quem se pediu explicação por ter roubado, começa:
- "Eu não consigo engolir. Quando engulo pára tudo aqui na garganta, sabes? Aqui. Se eu abrir a barriga com uma faca, posso ajudar a comida a chegar à barriga..." E continua:
- "Tás a ver estes pêlos na barriga? É por causa deles que a comida não desce..."
De imediato veio-me um pensamento:
- "Pai, queres que eu te corte os pelinhos da barriga para engolires melhor? Assim não precisamos de cortar a barriga e ficas com o problema resolvido..."
A cara do meu pai iluminou-se e responde: "Quero. E tu fazes-me isso?" Claro, respondi eu. Emocionado, deu-me um beijo e por entre promessas de que vinha já com a máquina para lhe tratar dos pêlos, ficou tranquilo até eu voltar.
Com muito carinho fui dando conta da tarefa. Ficou feliz e completamente crente que tinha resolvido a angústia de não poder engolir...
Para ele fazia sentido abrir um buraco no estômago para engolir... Para nós renasceu o medo. À medida que a doença evolui sentimos que cada vez é mais difícil vigiá-lo, controlá-lo. A incerteza daquilo que lhe passa na cabeça, o inesperado... deixa-nos apreensivos. Será que um dia chegaremos a tempo?
Assim vai a vida de uma memória perdida.
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