quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

DIÁRIO DE UMA MEMÓRIA PERDIDA - A RESPOSTA

Cara irmã do meu pai,

A sua carta anónima chegou bem. Porém, como deve compreender foi impossível dá-la a ler ao meu pai. Penso que mais por ignorância que por maldade, esqueceu-se que a doença dele era uma demência. Não faz mal. Eu compreendo. São muitos anos de ausência... 

O meu pai ao contrário do que fala, está numa profunda paz com ele e com o Mundo. Por uma razão apenas: cumpriu exemplarmente a sua missão na vida. Foi bom pai, bom marido, bom irmão e bom amigo de todos sem excepção. Estendeu a mão aos  que lha pediram sem esperar nada em troca. Pelo mal que a sua carta lhe faria, fico aliviada por ele não a poder ler.

Talvez por distracção, escreveu que, e passo a citar, "há erros que se pagam caros". Pois cara irmã do meu pai, saiba que doença não é castigo. As doenças existem para nós como existem para os restantes animais e pergunto: porque razão adoece um cão? É porque fez algo que não devia? Consegue perceber a idiotice que acaba de dizer? Aprenda que, pelo contrário, o karma existe e a vida é um boomerang. Tudo o que damos de bom, recebemos de volta em dobro. Tudo o que damos de mau, volta para nós da mesma forma. Se não souber do que falo, pergunte à sua cunhada, que depois de andar toda a vida a afiar a língua para prejudicar os outros, tem um karma que não a deixa dormir descansada para o resto da vida. O único erro grande do seu irmão foi querer ser amigo de todos os irmãos... Retenha isso na sua frágil memória.

Permita-me ainda, já que meu pai não pode fazê-lo, corrigir-lhe mais um lapso desta vez, penso que de memória: meu pai  NUNCA se afastou de ninguém, afastaram-se dele! Ainda as intrigas eram uma miragem, e vocês todos, sem excepção, vinham e voltavam de França sem o visitar! Normalmente sabia-se da chegada deste  ou daquele por acidente. A casa do meu pai NUNCA encheu com a vossa presença e era necessário receber um convite  na casa dos que já se encontravam definitivamente em Portugal para usufruir da vossa companhia ou por-vos os olhos em cima! Depois, veio o ultimato: "ou deixas de falar com o irmão do meio ou nós afastámo-nos!" Precisamente porque meu pai entendeu que não deveria excluir NENHUM irmão do seu convívio, zangaram-se com ele!  As partilhas vieram pôr a cereja no topo do bolo: mesmo depois de os terem deixado escolher, roubar à descarada metros ao que tinha herdado, ele tinha ainda que ser complacente e deixar que fizessem no que já era dele tudo o que lhes apetecesse! Seja sensata e admita: vocês abusavam da boa vontade dele! Por ele ter sido generoso toda a vida, achavam que lhes devia isso sempre.

Eu sei que tiveram a mesma educação mas o que cada um fez com o que recebeu, foi muito diferente. Logo agradeço que nem se compare, sequer de longe, ao sábio do seu irmão que soube receber os ensinamentos e transformá-los em bondade e carisma. O seu irmão transbordava de carácter. O sangue que lhe corre nas veias pode ser igual mas os códigos genéticos não. Meu pai parece um  "bastardo". Ele é e sempre foi diferente de todos vós.  

Mas o que me intriga mais na sua carta é dizer que não pode cá vir porque sua visita não seria por nós apreciada. Mas por acaso precisa da minha simpatia por si para dar um abraço ao meu pai? Sim é verdade. Não gosto de nenhum de vocês! Mas era suposto eu gostar depois de andarem já há 33 anos a enporcalhar meu nome sem que eu vos tenha feito mal algum? A mim parece-me que, precisamente por saberem o mal que me têm feito, receiam o confronto. Sosseguem. Isso é coisa de gente primitiva. Eu evoluí. Se o quisesse, tería-vos procurado a TODOS. Mas eu sou doutra casta. Assim que a vida me explicou a razão de serem assim para mim, deixei de sofrer e passei a viver feliz. E se puxar pela memória verá que fui eu que desapareci das vossas vidas e não vós... Por isso, mesmo que cá viessem, dificilmente conseguiriam por-me os olhos em cima...

Cara irmã do meu pai, ele de facto não consegue lembrar-se de ninguém, mas quando lhe dou um beijo, lhe digo que o amo e o abraço ele retribui com um sorriso frágil. Esqueceu-se das pessoas mas não dos afectos e do quanto isso lhe sabe bem... Sabe, minha cara, quando perdi a minha menina, as pessoas que ficaram com ela detestavam-me. E mesmo assim, sob ameaças, a fazerem-me esperas na escola dela para eu não me aproximar e ir lá vê-la, eu fui, sempre que o quis, sem medo de ninguém nem me importar com as consequências. Tudo isso para lhe dar um beijo e dizer que amava e que iria lutar por ela até ao fim da minha vida. Consigo, nem sequer se põe esse problema: foi-lhe dito já por 2 vezes ao telefone que podia cá vir sempre que o quisesse.

Não diga jamais de novo que tomar conta do meu pai é um dever e uma obrigação. Tomar conta dele é um privilégio e uma honra que fazemos sem qualquer sacrifício e com muito prazer. Eu sei que para si isso é difícil de compreender principalmente depois da grande disputa que travaram entre vós para se entenderem quando foi necessário cuidarem da vossa mãe. Mas aqui, tal como lhe disse anteriormente, somos pessoas diferentes. Nós somos azeite e vós, água. Por isso a mistura jamais será possível. E permita-me que lhe diga, a sua mãe partiu triste e seu pai revoltado. Serão anjos sim, mas não partiram em paz.

Ao contrário do que escreve, amor é, deixar as intrigas para acudir à solidão de um ente querido, é dar um abraço forte e ser capaz de dizer: "Desculpa mano! Amo-te muito e estou aqui contigo. Esquece tudo o que foi dito!". Para uma pessoa emocionalmente desestruturada como é seu caso, que andou e anda à deriva, entendo que confunda o que realmente é o amor. Espero que tenha aprendido alguma coisa.

A história ainda está a ser escrita. Não podemos mudar o que já passou mas podemos sempre alterar o seu final.

Pense nisso...





    

        







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