sexta-feira, 29 de novembro de 2013

O MEU AVÔ PATERNO

Eu não cresci com os meus avós, nem paternos nem maternos, e foi só aos 13 anos que comecei a privar com eles, quando regressamos definitivamente do Canada. 

Meu avô paterno era aquela figura que, numa primeira impressão, gostávamos logo dele: fazia rir toda a gente com a forma como contava suas histórias, era muito sorridente, muito conversador, cheio de energia que o tornava de certo modo cativante. Era nas reuniões familiares que o encontrava  e escusado será dizer, à época eram mesmo muitas... tantas que raro era o fim de semana que não nos juntássemos todos para alguma coisa. Ao início até lhe admirava a relação que tinha com minha avó a quem apelidava de "minha santa" e à qual se dirigia, aparentemente, com muito carinho e afecto. 

Porém, o tempo, ah! esse tão grande aliado, foi-me mostrando que nem tudo o que brilha é definitivamente... ouro. Os anos a passar revelaram um homem mesquinho, dissimulado, e mau, que, nem aos próprios filhos poupava nas críticas ou adjectivos impróprios. A primeira vez surge quando ouço comentar a vida, segundo ele, leviana da filha que, por ter um marido boémio, andava a passar uma fase menos boa. Encheu-a de nomes grotescos, pisou-lhe a imagem, rebaixou-a ao nível do chão, e perguntava-me eu, que pai era aquele que, ao invés de ajudá-la, a pisava.

Depois foi a vez de outro filho de quem ele dizia ter os filhos mais insuportáveis do planeta e cuja nora, a quem nunca se referiu como nora mas sim pela alcunha, dizia, quando eles não estavam presentes, que simplesmente não a suportava no seu estilo masculino de quem manda em tudo e se achava melhor que ninguém. Foi graças a ele, que todos ficamos a saber como tinha sido a vida deles em França, com detalhe quase obsceno. Destes... e dos restantes filhos, em França, claro!    

Mas ele não se ficava por aqui, e a dado momento foi a vez das  restantes filhas e por fim, o filho mais novo! Não poupou ninguém. Quando estava com uns, elogiava-os, quando estava com outros, arrasava-os! E eu cresci a ver isto sem perceber ainda que um dia chegaria a vez do meu pai e... a minha.

Quando a minha avó adoece, ele dependente dos filhos para lhe dar apoio, muda de estratégia e começa a afagar as filhas sabendo que seriam elas, em princípio, que o ajudariam. Pois é, mas como o tecido genético tinha sido herdado pelos descendentes, ao contrário do que ele imaginara, a questão virou uma autêntica batalha campal. Não fosse ele a correr fazer as partilhas para "obrigar ao compromisso", e teria ele ficado sozinho a cuidar da minha avó...  Apesar de ter sido essencialmente com o apoio das noras que ele deu conta à  vida, por razão nenhuma, como sempre, tinha de implicar com quem, não era filha mas fazia sua parte como se fosse, e na maior ingratidão imaginável! 

Estala o verniz do lado dos meus pais a quem ele começa a acusar de coisas terríveis e infundadas só pela malvadez de dizer mal. Pelo meio destas guerras, acaba por me atingir com insinuações grotescas classificando-me de tudo e mais alguma coisa de forma desprezível e maquiavélica! No entanto, um pormenor me distinguia dos outros:  eu nunca lhe tinha feito ou dito nada que justificasse esta falta de respeito pela minha pessoa. Pelo contrário, eu vivia à margem de todos os conflitos familiares. 

Mas uma carta dirigida ao meu pai, escrita pelas suas próprias mãos viria a determinar tudo aquilo que passei a sentir por aquela criatura: pena e desprezo! Em poucas linhas deixava perpetuar o que pensava do meu pai, da minha mãe e de mim. Jamais lhe perdoei o sofrimento e a tristeza que trouxe aos olhos do meu pai pelas palavras que lhe dirigiu, e a raiva pelo que me foi dedicado a mim e minha mãe! 

Soube da morte dele e pensei: faz boa viagem e descansa em paz, se puderes. E não fui à sua despedida. Fui sobejamente criticada, como sempre, pela família paterna inteira, que entende, que socialmente, independentemente de como tenha sido a nossa relação com a pessoa defunta em vida, hipocritamente, devemos comparecer só porque se trata de um enterro de um familiar. Mas falta dizer, que caso tivesse tido o desplante de aparecer, iriam todos  criticar-me igualmente, pelas razões inversas!!!! 

Cada um tem de mim exactamente o que cativou. E ao meu avô sobrou apenas desprezo.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

DIÁRIO DE UMA MEMÓRIA PERDIDA - OS IRMÃOS

A doença do meu pai foi oficialmente diagnosticada em 2005 mas muito antes disso, ela já tinha tomado conta do corpo dele. Surtos de agressividade, mudanças de humor repentinas, atitudes incompreensíveis fizeram com que certo dia não esperássemos mais e fomos ouvir o veredicto: tinha uma demência Fronto-temporal.

De lá para cá, a notícia correu a passo lento, porque ao contrário de outras, esta não interessava para nada: não era um divórcio, não era uma agressão familiar, não era uma desgraça alheia e por isso, comentar este assunto não dava adrenalina nenhuma. Pelo contrário, dava trabalho e chatice. Olha agora ter de visitar o Manel e ainda por cima chato e com falhas de memória! Ignorar foi o caminho de todos...

Meu pai tem 6 irmãos mas quem o vê acredita seguramente que é filho único. Em 9 anos de doença foi recebendo a visita de um deles até este se ausentar por completo; por outro que lhe fez apenas 1 visita fugaz; por duas tentativas de uma irmã para que se disponibilizasse para participar num convívio que, apesar de alertada para o lado anti-social da doença, insistiu sem sucesso. Nos Natais e aniversários, o telefone jamais tocou, as visitas nestas datas especiais, muito menos. Visto desta forma parece que ele foi uma pessoa terrível e que por isso, nem amigos, nem irmãos se importam. E de facto, o meu pai foi um indivíduo "execrável" para os irmãos. Ao mais novo, que era servente da construção civil em França, com a esposa a fazer limpezas, um trabalho humilde mas digno e a viver num cubículo que era simultâneamente quarto, cozinha e sala para 4 pessoas, quando lhe pede ajuda para sair daquele país, meu pai coloca-o como sócio da sua empresa em Portugal. Mesmo assim, e não satisfeito porque os clientes o tinham como o número dois e nunca queriam tratar dos assuntos senão com meu pai, as queixas sucessivas fizeram com que novamente, meu pai, tal como nos tempos de gaiato, preocupado com os irmãos, idealizou e criou um negócio de exploração de areia fina, e pô-lo na gerência. O irmão do meio, a saber das ajudas concedidas ao mais novo, pede ao "tenebroso" meu pai, ajuda também. Esse, também na construção civil, regressa de vez de França e ingressa na sociedade. Um negócio de "ouro" onde não tardaram as desavenças provocada pela  "senhora" que achava injusto repartir os lucros tão elevados das areias com os menos elevados da indústria. O "patife" do meu pai, que vendo a relação degradar-se com seus irmãos por causa dos negócios,  resolveu dar-lhes... a galinha dos ovos d'ouro que eles tanto queriam para si. Valeu ao mais novo a desistência do outro, ficando sozinho nesse universo de exploração milionária! 

Depois vieram as partilhas, e o "ladrão" do meu pai, mais uma vez, sentou-se impávido e sereno nas reuniões, num papel passivo e desinteressado dizendo claramente: "Escolham! A minha vida já está ganha. Mais propriedade, menos propriedade não me interessa mesmo nada!" E assim foi. Escolheram todos. Alguns até já tinham escolhido, negociado e escriturado  bens muito antes das partilhas. Outros em negócios secretos, já se tinham apoderado de propriedades para eles e filhas com o aval do meu avô, é claro!. Ah! Mas isso, tal como diria Teresa Guilherme: "Isso agora não interessa nada..." Houve quem se arrepende-se da escolha e lhe pedisse para trocar de novo. E ele trocou.    

O que de facto o meu pai fez de mais tenebroso na vida foi ajudar os irmãos. Antes o tivesse feito, enquanto o pude,  à caridade, aos sem abrigo, aos pobres... Se assim tivesse sido hoje muito provavelmente teria grandes irmãos da vida, agradecidos até à morte pelas preciosas ajudas e a casa cheia de gente.

Mas o mais velho de 6 irmãos, que em menino descobria as chouriças e o mel mas que fazia questão em repartir com os mais novos às escondidas do meu avô, mesmo sujeito a ser descoberto, hoje não tem louvores de nenhum deles. Não tem afecto de nenhum deles.

 E ao altruísmo dele, responderam-lhe com o abandono... 





   

DIÁRIO DE UMA MEMÓRIA PERDIDA - A INCONTINÊNCIA





As mudanças vão chegando cada vez mais rápidas. Ainda há pouco tempo meu pai andava: já quase não anda. Tinha memória suficiente para se recordar algumas vezes de nós: agora já não sabe quem somos. Sorria e falava assim que me via: agora nem sorri e mal fala. Dava os seus passeios pelo quintal: agora não sai do sofá. E como se isto já não bastasse já é incontinente...

Num espaço de uma semana, em catadupa, a vida do meu pai transformou-se radicalmente. De olhos vazios, sempre calado ou a dormir, sem autonomia até para ir sozinho à casa de banho, o primeiro deslize acontece como que um aviso: brevemente acamará. Já não controla as mais pequenas necessidades básicas.  E desengane-se quem pensava que ainda ia muito a tempo de o ver. Já não resta dele aqui senão a carcaça, um corpo que embora não seja velho, apenas representa um estado físico de alguém. De um ser humano, de uma pessoa sem identidade, sem vida. 

Meu pai com memórias e histórias que repetia sem fim já não está no meio de nós sendo-lhe indiferente quem o rodeia. 

Quem privou com ele estes tempos, levará ainda bocados partilhados dessa despedida, lenta e tenaz. Os outros, ficarão com nada... senão com o passado.  


quinta-feira, 21 de novembro de 2013

DIÁRIO DE UMA MEMÓRIA PERDIDA - O SAPATO



O tempo vai passando sem que nos apercebamos do quanto a doença evolui. Tendencialmente somos levados a pensar que tudo flui devagarinho até que um dia, surpreendentemente verificamos o quanto estávamos errados.

Meu pai perdeu a memória mas aqui e acolá, ia dando sinais que se lembrava de algumas coisas: embora com uma conversa pouco fluente, dava conta de coisas do passado com exactidão e a nós, com uma falha de vez em quando, acabava sempre por nos reconhecer. 

Nestes dias, ele estava como sempre, a implicar com os chinelos. Minha mãe tinha-lhe comprado uns chinelos novos mas ele queria os velhos... Dizia que os novos o faziam cair. E não fosse ele teimoso, minha mãe para que ele parasse com aquilo, gracejou dizendo: " Se preferires dou-te os meus!" Imediatamente, meu pai, fixando os sapatos dela, responde:" Quero!" Sem saber o que dizer e pensando que ele estava a mangar, nega-lhos dizendo que eram sapatos de senhora e que tivesse juízo! Mas eu, ao contrário, observei-o  tentando perceber o que se estava a passar e digo:" Mãe, dá-lhe o sapato!" E ela  assim o fez. Entregou-lho e assim que pegou nele, meu pai tentava insistentemente calçá-lo no pé. Era uma sandália branca de senhora de tacão alto. E enquanto ele se debatia com aquela tarefa árdua de o fazer caber no pé, dentro de mim invadia-me uma tristeza monumental. Percebi  que já nada do meu pai ali estava. Nem uma réstia da sua identidade, do seu ser... Já só permanece o corpo lento, cansado e doente. A muito custo segurei uma lágrima e disse:" Mãe, o pai já se foi de vez. O que está ali é só um corpo. Ele já não sabe o que faz e tenho a certeza que já não nos reconhece às duas." Dito isto, dirigi-me a ele e ternamente digo-lhe para não insistir mais porque o sapato era pequeno além de ser menos bonito que as suas chinelas novas. Isso não o demoveu de insistir nas chinelas velhas, mas pelo menos desinteressou-se das sandálias da minha mãe. Enquanto olhava para ele e lhe afagava o cabelo, pergunte-lhe se sabia quem eu era. E ele, com um olhar distante e vazio responde:"Não!" Então apontei para a minha mãe e faço-lhe a mesma pergunta:" E aquela? Sabes quem é pai?" Virando-se lentamente para a ver melhor, sem hesitar, responde com o mesmo"não".

Não tenho dúvidas. O meu pai já "partiu"...




O CASTING

O anúncio já tinha passado várias vezes na tv até que um dia pensei: "É hoje!" Porque não?! Sonhar não tem idade. E se eu  tentasse? 

Até que o dia da audição chegou. Na madrugada fria do dia 9 de Setembro seguimos em direcção ao Porto. Tínhamos consciência que era preciso sair cedo para não apanhar muita fila porém, à chegada, ficamos a saber que o conceito de "cedo", para nós, é demasiado tarde para os castings... e tínhamos assim , às 7h da manhã,  apenas cerca de 1 milhar de pessoas à nossa frente. Um mar de gente. Uns enrolados em sacos cama, outros em cobertores, deitados no passeio ou de pé, a ouvir música ou a tocá-la, mas todos com a mesma motivação: a música! Jovens e menos jovens, caras conhecidas outras nem por isso, gente de todos os estilos aglomeravam-se por todo o recinto. A equipa da produção sempre numa azàfama lá iam chamando de tempos a tempos pelos números de cada concorrente. Pelo meio, ensaios sem fim de spots publicitários em que todos em uníssono nos agitávamos histéricos para a câmara amovível! Uma espera interminável que só foi interrompida  ao fim do dia ... Para ficar a saber que, com tanta gente ainda para ouvirem, as opções para nós era voltar no dia seguinte ou esperar por novas audições!! Com a promessa que iria-mos ser logo atendidos, sem fila de espera, decidi voltar no outro dia.   

Desta vez, assim que chegamos, entrei logo para o check-in. Depois da entrega do formulário e a foto da praxe frente ao "logo" do programa, segui para a sala de espera. E eu que até ali estivera sempre muito calma, de repente senti-me invadida por um misto de medo e nervosismo atrozes. Sentia as batidas dentro do peito cada vez mais intensas e sem saber porquê também, fiquei com um dos ouvidos tapados... "Boa"! - pensei eu - agora além de nervosa pra morrer vou também meio surda! Não esperei muito até ouvir o meu número - 8099 - e em pequeno grupo lá subimos para a sala das audições. Enquanto ouvia o candidato que entrara à minha frente pensei no quanto iria perder a minha prestação por não ter trazido o suporte musical que tinham pedido. Ia cantar àcappella e isso aterrorizava-me. De repente a porta abriu-se e gentilmente sou convidada a entrar. Apenas um cameraman e um membro da produção na sala. É-me dito para me colocar no  X por baixo dos holofotes e ao 1,2,3 ... começar! Lembro-me de começar muito bem e de ver os rosto daquele homem sorridente com o resultado mas a dado momento páro! Esqueço-me da letra. Pergunto se posso repetir. Com um sorriso franco no rosto, é-me pedido para ter calma. Passo para a canção seguinte. Mas à segunda vez... volto a ficar em branco. Dentro de mim, um sentimento horrível da falhanço, logo eu que não gosto nunca de falhar. Aí, o membro da produção levantou-se. Dirigiu-se até à janela, tirou um cigarro enquanto olhava para mim dizendo:" Você sabe quantas pessoas estão ali fora? Eu não costumo fazer isto mas confesso que gosto muito do seu timbre de voz... Por isso, cante mulher! Perca esse medo e cante! Cante como se estivesse no chuveiro, no carro, a limpar a casa, mas cante! Bote pra fora essa voz que tem!" Senti que era o tudo ou nada e aquelas palavras caíram-me bem. Cantei o tema até ao fim mas com o sentimento que ficaria por ali... Quando terminei, foi-me dito que tinha sido pena esta insegurança. Que tinha boa presença física, boa voz mas que isso não era o suficiente. Mesmo assim deixou no ar que por ele, passava mas que dependia dos colegas ao ver o vídeo. Disse-me ao despedir-se:" Não prometo nada, vai depender muito daquilo que os outros vão achar. Foi uma pena. Você canta muito bem!"

Saí tristíssima pelo corredor fora, a passo mecânico, alheia a tudo que me rodeava. Até que uma voz chama por mim:" Espere! Vai para aquela sala para entrevista!" Enquanto esperava reparei que muitos saíam sem serem entrevistados e imaginei que talvez isso pudesse querer dizer alguma coisa...  De semblante carregado desci depois para junto do meu companheiro de viagem a quem revelo o desastroso casting. Ao abandonar o edifício, tivemos ainda tempo de esbarrar com a Bárbara Guimarães e o Manzarra, que, ao reconhecer o vendedor do seu dogue, simpaticamente nos cumprimentou aos dois, com direito a beijinhos também...

Mesmo desiludida, levava comigo alguma esperança que se esvaneceu assim que o prazo previsto para me contactarem terminou. Os primeiros tempos foram difíceis pois não me perdoava tamanha falha. Tinha aberto uma caixinha de um sonho guardado há tanto tempo e fechada pelas circunstâncias da vida a sete chaves e não soube agarrar o momento como deveria...

Mas hoje, já superada desse desgosto, percebi que se não aconteceu foi porque ainda não era o momento. Entendi que guardar tanto tempo um desejo de criança não me deu traquejo para subir a um palco e que por muito que a vida me afastasse das minhas crenças, deveria ter lutado um pouco mais por aquilo que realmente me fazia feliz: a música. Mas não me arrependo de nada. Lutar por aquilo que queremos é intemporal e correr atrás dos sonhos é um acto de coragem que só os loucos entendem. Faria tudo de novo mas com mais convicção e mais garra!

Faria não, farei! Porque se outros castings houver, eu vou!


quarta-feira, 13 de novembro de 2013

DIÁRIO DE UMA MEMÓRIA PERDIDA - A QUEDA



Foi o destino que me trouxe àquela hora.  Até porque a consulta era só às quatro da tarde. Mas tinha coisas para fazer a pedido da minha mãe e decidi ir mais cedo... Ao aproximar-me da casa dos meus pais sinto alguém a correr. Pensei de imediato que seria meu filho que regressava da escola mas de repente, um estrondo na garagem que não podia ser de uma criança, fez-me temer o pior: meu pai acabara de cair com violência. Apresso o passo e assim que o avisto, de cara completamente colada ao chão, ensopado em sangue, imóvel e sem fala,  tento a todo o custo que ele reaja à minha presença tentando ao mesmo tempo levantá-lo. "Pai, estás bem?! Fala comigo!" Levantei-lhe a cabeça, depois o corpo, pesado e morto sem que proferisse uma palavra, um gemido. "Pai, fala comigo! Consegues andar?!"  Sem resposta, chamo pela minha mãe na esperança que ela me ouvisse: "Mãe estás aí?!! Ajuda-me, o pai caiu e feriu-se..." Amparado pelas duas, foi até ao seu lugar de sempre: o sofá.

Já com a maleta dos primeiros socorros, trato-lhe das feridas com todo o carinho e cautela para não o magoar. Nos cantos dos olhos, encontro duas lágrimas teimosas que caem...  "Tens dores pai?! Mas ele não responde. "Deixa-me ver a boca por dentro, estás a sangrar muito..." A muito custo obedeceu. As minhas suspeitas estavam certas: tinha um golpe profundo no lábio inferior. Depois dos curativos deitei-o e fiquei  durante uns largos minutos a contemplá-lo. O meu pai, outrora tão forte e cheio de vida estava ali tão indefeso, tão frágil. A doença está a levá-lo a cada dia que passa sem dó nem piedade sugando-lhe a pouca autonomia que ainda lhe restava. 

Virou-se um capítulo. Ainda ontem dava as suas voltinhas pelo quintal sem merecer cuidados. Hoje, só amparado para não cair... 

Sinais que nos dizem que a próxima etapa está perto... demasiado perto...