quinta-feira, 28 de novembro de 2013

DIÁRIO DE UMA MEMÓRIA PERDIDA - A INCONTINÊNCIA





As mudanças vão chegando cada vez mais rápidas. Ainda há pouco tempo meu pai andava: já quase não anda. Tinha memória suficiente para se recordar algumas vezes de nós: agora já não sabe quem somos. Sorria e falava assim que me via: agora nem sorri e mal fala. Dava os seus passeios pelo quintal: agora não sai do sofá. E como se isto já não bastasse já é incontinente...

Num espaço de uma semana, em catadupa, a vida do meu pai transformou-se radicalmente. De olhos vazios, sempre calado ou a dormir, sem autonomia até para ir sozinho à casa de banho, o primeiro deslize acontece como que um aviso: brevemente acamará. Já não controla as mais pequenas necessidades básicas.  E desengane-se quem pensava que ainda ia muito a tempo de o ver. Já não resta dele aqui senão a carcaça, um corpo que embora não seja velho, apenas representa um estado físico de alguém. De um ser humano, de uma pessoa sem identidade, sem vida. 

Meu pai com memórias e histórias que repetia sem fim já não está no meio de nós sendo-lhe indiferente quem o rodeia. 

Quem privou com ele estes tempos, levará ainda bocados partilhados dessa despedida, lenta e tenaz. Os outros, ficarão com nada... senão com o passado.  


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