O tempo vai passando sem que nos apercebamos do quanto a doença evolui. Tendencialmente somos levados a pensar que tudo flui devagarinho até que um dia, surpreendentemente verificamos o quanto estávamos errados.
Meu pai perdeu a memória mas aqui e acolá, ia dando sinais que se lembrava de algumas coisas: embora com uma conversa pouco fluente, dava conta de coisas do passado com exactidão e a nós, com uma falha de vez em quando, acabava sempre por nos reconhecer.
Nestes dias, ele estava como sempre, a implicar com os chinelos. Minha mãe tinha-lhe comprado uns chinelos novos mas ele queria os velhos... Dizia que os novos o faziam cair. E não fosse ele teimoso, minha mãe para que ele parasse com aquilo, gracejou dizendo: " Se preferires dou-te os meus!" Imediatamente, meu pai, fixando os sapatos dela, responde:" Quero!" Sem saber o que dizer e pensando que ele estava a mangar, nega-lhos dizendo que eram sapatos de senhora e que tivesse juízo! Mas eu, ao contrário, observei-o tentando perceber o que se estava a passar e digo:" Mãe, dá-lhe o sapato!" E ela assim o fez. Entregou-lho e assim que pegou nele, meu pai tentava insistentemente calçá-lo no pé. Era uma sandália branca de senhora de tacão alto. E enquanto ele se debatia com aquela tarefa árdua de o fazer caber no pé, dentro de mim invadia-me uma tristeza monumental. Percebi que já nada do meu pai ali estava. Nem uma réstia da sua identidade, do seu ser... Já só permanece o corpo lento, cansado e doente. A muito custo segurei uma lágrima e disse:" Mãe, o pai já se foi de vez. O que está ali é só um corpo. Ele já não sabe o que faz e tenho a certeza que já não nos reconhece às duas." Dito isto, dirigi-me a ele e ternamente digo-lhe para não insistir mais porque o sapato era pequeno além de ser menos bonito que as suas chinelas novas. Isso não o demoveu de insistir nas chinelas velhas, mas pelo menos desinteressou-se das sandálias da minha mãe. Enquanto olhava para ele e lhe afagava o cabelo, pergunte-lhe se sabia quem eu era. E ele, com um olhar distante e vazio responde:"Não!" Então apontei para a minha mãe e faço-lhe a mesma pergunta:" E aquela? Sabes quem é pai?" Virando-se lentamente para a ver melhor, sem hesitar, responde com o mesmo"não".
Não tenho dúvidas. O meu pai já "partiu"...
Não tenho dúvidas. O meu pai já "partiu"...
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