quarta-feira, 11 de março de 2015

A MULHER QUE ME TORNEI

Não somos o que somos por acaso. A vida vai-nos talhando com um golpe aqui, outro ali, que quanto mais fundo mais nos ensina. Somos uma equação de soma de experiências boas e más, onde multiplicamos as aprendizagens, que  depois dividimos pelos afectos . Somos o resultado de uma vivência construída segundo a segundo, o fruto de cada ensinamento trazido pelo trilho seguido, por onde caminhamos cegamente sem saber para onde nos leva. Somos aprendizagem.

Aos cinco anos foi-me dito que teria de tomar conta de mim. Que o pai estaria fora toda a semana e que a mãe, só a veria à hora de almoço na cantina da escola onde trabalhava. Cedo aprendi o significado da palavra responsabilidade. A mãe que saia de casa ás 5h da manhã, deixava o despertador, a roupa para vestir e as moedas, todas contadas, para ir buscar o jantar, ao "Chuck's", um restaurantezito fast food, mesmo ao lado de casa. E sozinha  cumpria o ritual matinal sem nunca me atrasar na escola. Quando voltava, encontrava o vazio de uma noite solitária onde não havia lugar para medos ou inseguranças. Como certa noite, por não conseguir despir a camisola, e depois de muito choro compulsivo, dormir com ela vestida... Noutra, dificuldades nos trabalhos escolares que, rendida ao desespero, resolvi esperar pelo dia seguinte, e enfrentar a professora. A vida ensinava-me assim, a primeira lição: Aprender a enfrentar as adversidades... sozinha. 

Cresci assim, sempre sozinha durante toda a minha infância. Por isso, quando minha mãe adoeceu, tinha eu 9 anos, tomei conta da casa, do meu pai, de mim, com um primor tal que encheu meu pai de orgulho. Não tinha irmãos e por isso nunca pude contar com ninguém. Abraços e carinhos só vinham com meu pai ao fim de semana porque minha mãe, quiçá por ter essa lacuna também, nunca manifestou qualquer gesto mais afectuoso. Não havia aconchego ao deitar. Não havia palavras de incentivo ou interesse pelos pequenos sucessos trazidos da escola. Como aquele dia em que, feliz por ter aprendido a ler, tanto quis que ela me ouvisse... Mas não ouviu.  Lembro-me isso sim, que ela me abraçava ou dava a mão sempre que tirávamos fotografias...

Por isso quando me tornei mulher nada do que a vida madrasta me reservou me impediu de seguir em frente. Foram montanhas, foram rochedos. Foram fogos, foram maremotos. Foi tudo o que havia para experimentar como se o Diabo tivesse apostado com Deus que me derrubava. E Deus convicto de que tinha em mim seu melhor soldado dissesse:" Não! A esta força feita de fé, nunca conseguirás".  Fiz-me guerreira. À medida que a vida me foi talhando com golpes profundos, daqueles que rasgam a alma em bocados, que nos deixam quase inanimados, convictos que dali não saímos mais, eis que, quase como por força divina, como uma fénix, renasci vezes sem conta das cinzas. Mas sempre que ressurgi, vim diferente. Diferente na forma de ver o que me rodeia; de sentir a vibrações emanadas pelos que circulam à minha volta; de agir para com os outros. Em suma, aprendi a sobreviver nesta selva de gentes despidas de valores, apagadas de carácter, embriagadas de malvadez, famintas de ambição doentia.

Se hoje sou o que sou devo-o ao que vivi. Uns adoram. Outros provavelmente odeiam. Tanto me faz. Ninguém percorreu os mesmos caminhos. Por isso ninguém está à altura de me julgar.  Se sou muito determinada, independente e teimosa nas minhas convicções. Se nada me demove quando escolho um caminho, se aguento tudo sozinha até ao último suspiro sem pedir auxílio,  foi porque tive de aprender a prescindir das pessoas para sobreviver.

Sou uma sobrevivente.

 


     

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