Recordo como se fosse hoje o primeiro dia em que meu pai, reencontrou-a junto à casa do meu avô. Incrédulo repetia incessantemente "tu não és a minha irmã mais nova pois não?!!" Estupefacto pela transformação daquela menina numa mulher linda depois de anos de ausência no estrangeiro, o meu pai demonstrava assim a sua admiração ao rever a irmã. E de facto ele estava coberto de razão. De cabelos longos e negros que lhe cobriam as costas, uma mini-saia curta que lhe mostrava as pernas bem torneadas, estatura pequena disfarçada nuns sapatos altos, um sorriso encantador que se misturava de vez em quando com uma gargalhada, ela estava assombrosamente bonita. O meu pai não escondera que era a sua irmã favorita. Talvez por ele ser o mais velho dos irmãos e talvez por ter cuidado dela em criança. Não sei. Sei apenas que esta era a que lhe roubava mais afectos e com quem ele dizia entender-se melhor entre as raparigas.
Quando a conheci tinha apenas 11 aninhos. E tudo nela me ofuscava. Ela tinha tudo: beleza, charme e um sentido de humor incrível. E percebi rapidamente porque meu pai gostava tanto dela. Sempre alegre e bem disposta, de sorriso franco na cara, animava qualquer lugar onde estivesse. Nesse mesmo ano casou. Quando conheci o noivo não tive dúvidas. Eles tinham sido feitos um para o outro!! Ambos alegres e divertidos, uns autênticos foliões que roubavam gargalhadas a toda a plateia que os ouvia! E não é que até ele tinha uma gargalhada sonora e divertida? Desde então era fatal perguntar, quando havia festas ou reuniões de família se eles iriam estar presentes. Era a garantia que aquela tarde iria ser super hilariante.
Apesar de gostar dela, nunca nos tornamos amigas. Não por mim porque estaria de certeza receptiva a isso. Mas por ela... Depois do meu divórcio era perceptível a distância que colocava. Um afastamento que ela impunha por razões que só ela sabe. Soubera que ela tinha sido das que menos comentara o meu divórcio e por isso nutria por ela um sentimento maior. Era de todas a que me parecia mais leal.
Mas é curioso como a vida muda tudo por razões estúpidas. Desde que o meu pai adoeceu, procuro compreender a razão de tantas ausências. E que me perdoem mais uma vez mas não as aceito. Ela sempre fora querida para o meu pai e eram aparentemente muito amigos mas nem assim ele é mais procurado. Eu sei que houveram atritos e recordo-me principalmente de um telefonema que o meu pai recebeu dela: transtornado, desligou o telefone, sentou-se na sua poltrona, acendeu um cigarro e ficou silencioso durante todo o resto da noite. Não proferira uma única palavra do que lhe tinha sido dito. Estava introspectivo e triste. Percebi que aquela discussão o abalara profundamente. Mas terá ela alguma vez percebido as razões dele? Terá ela procurado entender o que se estava a passar com ele? Fui reler uma mensagem que tinha enviado a um primo depois de ter sabido da passagem dela pela casa dos meus pais e não terem sido atendidos. Sabendo da má língua da minha madrinha que não se coibiu de dizer que minha mãe "muitas vezes não atendia porque não queria", corri explicar que era falso e que se ela não atendeu era porque não estava. Deixei o recado junto do primo e número de telemóvel dela para que todos pudessem visitar meu pai sempre que o quisessem. Meu primo, por quem tenho muito apreço terá com certeza absoluta transmitido o recado mas volvidos 3 anos, após o meu apelo, tudo continua na mesma. Ele não recebe visitas, muito menos dela.
No momento em que escrevo estas palavras, sei que cá está e se calhar é cedo para concluir o que quer que seja. Mas já lá vai uma semana e tudo permanece em silêncio.
Terá meu pai falhado assim tanto com ela para que nada tenha restado dos afectos que trocaram? Gostava de pensar que tudo não passa de equívocos, de mal entendidos, de coisas parvas e tolas que às vezes acontecem entre pessoas que se amam. Queria acreditar que um dia as consciências despertarão e perceberão as perdas que provocam injustamente. No entanto sei que há algo já irreparável: volvidos estes anos já não é possível esclarecer mal entendidos, já não é possível explicar o que quer que seja e foi nessa escuridão de dúvidas e de tristezas que o meu pai mergulhou na sua viagem pela demência. Tenho pena, muita pena que não lhe tenham dado aquilo que ele mais desejava antes de "morrer": ver todos os irmãos conciliados com ele...
Ele merecia isso e muito muito mais.