sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

A IRMÃ PREFERIDA

Recordo como se fosse hoje o primeiro dia em que meu pai, reencontrou-a junto à casa do meu avô. Incrédulo repetia incessantemente "tu não és a minha irmã mais nova pois não?!!"  Estupefacto pela transformação daquela menina numa mulher linda depois de anos de ausência no estrangeiro, o meu pai demonstrava assim a sua admiração ao rever a irmã. E de facto ele estava coberto de razão. De cabelos longos e negros que lhe cobriam as costas, uma mini-saia curta que lhe mostrava as pernas bem torneadas, estatura pequena disfarçada nuns sapatos altos, um sorriso encantador que se misturava de vez em quando com uma gargalhada, ela estava assombrosamente bonita. O meu pai não escondera que era a sua irmã favorita. Talvez por ele ser o mais velho dos irmãos e talvez por ter cuidado dela em criança. Não sei. Sei apenas que esta era a que lhe roubava mais afectos e com quem ele dizia entender-se melhor entre as raparigas. 

Quando a conheci tinha apenas 11 aninhos. E tudo nela me ofuscava. Ela tinha tudo: beleza, charme e um sentido de humor incrível. E percebi rapidamente porque meu pai gostava tanto dela. Sempre alegre e bem disposta, de sorriso franco na cara, animava qualquer lugar onde estivesse. Nesse mesmo ano casou. Quando conheci o noivo não tive dúvidas. Eles tinham sido feitos um para o outro!! Ambos alegres e divertidos, uns autênticos foliões  que roubavam gargalhadas a toda a plateia que os ouvia! E não é que até ele tinha uma gargalhada sonora e divertida? Desde então era fatal perguntar, quando havia festas ou reuniões de família se eles iriam estar presentes. Era a garantia que aquela tarde iria ser super hilariante.    

Apesar de gostar dela, nunca nos tornamos amigas. Não por mim porque estaria de certeza receptiva a isso. Mas por ela... Depois do meu divórcio era perceptível a distância que colocava. Um afastamento que ela impunha por razões que só ela sabe. Soubera que ela tinha sido das que menos comentara o meu divórcio e por isso nutria por ela um sentimento maior. Era de todas a que me parecia mais leal.  

Mas é curioso como a vida muda tudo por razões estúpidas. Desde que o meu pai adoeceu, procuro compreender a razão de tantas ausências. E que me perdoem mais uma vez mas não as aceito.  Ela sempre fora querida para o meu pai e eram aparentemente muito amigos mas nem assim ele é mais procurado. Eu sei que houveram atritos e recordo-me principalmente de um telefonema que o meu pai recebeu dela: transtornado, desligou o telefone, sentou-se na sua poltrona, acendeu um cigarro e ficou silencioso durante todo o resto da noite. Não proferira uma única palavra do que lhe tinha sido dito. Estava introspectivo e triste. Percebi que aquela discussão o abalara profundamente. Mas terá ela alguma vez percebido as razões dele? Terá ela procurado entender o que se estava a passar com ele? Fui reler uma mensagem que tinha enviado a um primo depois de ter sabido da passagem dela pela casa dos meus pais e não terem sido atendidos. Sabendo da má língua da minha madrinha que não se coibiu de dizer que minha mãe "muitas vezes não atendia porque não queria", corri explicar que era falso e que se ela não atendeu era porque não estava. Deixei o recado junto do primo e número de telemóvel dela para que todos pudessem visitar meu pai sempre que o quisessem. Meu primo, por quem tenho muito apreço terá com certeza absoluta transmitido o recado mas volvidos 3 anos, após o meu apelo, tudo continua na mesma. Ele não recebe visitas, muito menos dela. 

No momento em que escrevo estas palavras, sei que cá está e se calhar é cedo para concluir o que quer que seja. Mas já lá vai uma semana e tudo permanece em silêncio.

Terá meu pai falhado assim tanto com ela para que nada tenha restado dos afectos que trocaram? Gostava de pensar que tudo não passa de equívocos, de mal entendidos, de coisas parvas e tolas que às vezes acontecem entre pessoas que se amam. Queria acreditar que um dia as consciências despertarão e perceberão as perdas que provocam injustamente. No entanto sei que há algo já irreparável: volvidos estes anos já não é possível esclarecer mal entendidos, já não é possível explicar o que quer que seja e foi nessa escuridão de dúvidas e de tristezas que o meu pai mergulhou na sua viagem pela demência. Tenho pena, muita pena que não lhe tenham dado aquilo que ele mais desejava antes de "morrer": ver todos os irmãos conciliados com ele... 

Ele merecia isso e muito muito mais.

A FALAR É A GENTE SE ENTENDE


Dizem que é a falar que a gente se entende. Nem sempre. Tudo depende de quem nos ouve. Da vontade do mesmo de nos ouvir, de nos entender. Depois virá os seus valores, os seus conceitos de vida. E como se tudo isto não bastasse, o grau de literacia. Sem tudo isso, o nosso interlocutor pode não entender nem uma palavra daquilo que estamos a dizer, como se ouvisse noutra língua qualquer, um aglomerado de palavras e sons imperceptíveis. 

O acto de falar, que à primeira vista parece tão fácil, transforma-se muitas vezes numa batalha interminável em que um quase esgota o lêxico nas explicações sem que o outro entenda seu discurso. Quantas vezes não damos por nós completamente exaustos quando num fim de conversa verificamos na expressão ou palavras do outro, que não fomos nem um pouco compreendidos?

Para que o entendimento aconteça na perfeição terão de haver logo à partida afinidades com o nosso interlocutor. Coisas simples como, sentir como nós, pensar como nós, ver o Mundo como nós, falar como nós... Quando isso acontece a sintonia é perfeita. As conversas são longas e duradouras. O tempo passa voando saudoso de um próximo encontro. 

Sou comunicadora por excelência. Não consigo dizer nada por meias palavras. Se me pedem uma explicação, tomo todo o meu tempo a fazê-lo descrevendo tudo o que entender como se de uma tela se tratasse.  Se me pedem para contar o meu dia, descrevo-o como se estivesse a escrever um livro com detalhes, com diálogos, com côr. Não faço nada em tons cinzentos muito menos quando falo... Não gosto de gente de monossílabos, de sims e nãos como únicas respostas. Não gosto de diálogos curtos e despidos feitos à pressa como quem despacha o cobrador da luz. As palavras são belas e fizeram-se para se usar e abusar porque nas frases breves muito se deixa por falar... Por isso, quando me apercebo que sou mal entendida, fico chateada. E eu que tanto me esforço por me fazer entender, sinto que todo o meu empenho de pouco valeu.   Revolto-me por vezes com esta dificuldade de comunicação que às vezes me atormenta  e não sossego enquanto não me faço entender. Porque não há nada pior que ser mal interpretado, mal entendido.   

Voltei a ler o que me escreveram naquele dia e podia ignorar de vez o assunto. Mas não consigo. A carta revela do início ao fim erros de interpretação ao que por mim foi dito. Um amontoado de palavras retorcidas pela incapacidade de as entenderem, provocando sentimentos erróneos. A autora debate-se em sentimentos exaltados convencida que os odeio...  Seria tão mais simples se na dúvida pedissem para repetir-mos. Que pedissem para explicarmos melhor. Que  ousassem  até a  falar pessoalmente. Que  não se deixassem levar por ideias tolas e sem fundamento só porque tenho coragem de dizer o que me vai na alma.

Na verdade o entendimento só acontece quando o queremos, quando o procuramos. As palavras por si não fazem nada se a quem elas se destinam não estiver disposto a entendê-las...

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

AS PRAXES



A tragédia do Meco é sem dúvida o assunto do momento. De imediato elevam-se vozes, movimentam-se grupos, uns a favor outros contra. O assunto é polémico e opinar sobre ele merece todo o cuidado. 

Como tudo na vida, tudo tem de ter equilíbrio e nada seria prejudicial se fosse feito de acordo com regras e bom senso. No entanto a história mostra-nos que não tem sido assim. E o que não faltam são casos graves de consequências das praxes: uns ficam paraplégicos, outros em coma alcoólico, outros com danos psicológicos e em casos muito piores... morrem! Perante esta realidade impõe-se medidas e céleres. Nenhum pai pode viver na angústia de ver um filho entrar na universidade e temer pelas praxes ali existentes. E as medidas, por muitos impopulares que sejam terão de ser tomadas pelo bem de todos.

Eu fui praxada. E devo dizer que terá sido um dos dias mais divertidos da minha vida! Recordo que naquele dia, fomos tratar de um assunto administrativo na secretaria. Reparamos num reboliço que havia no hall de entrada cheio de "doutores" devidamente trajados mas longe de adivinhar o que se iria passar, entramos normalmente. De repente, um grupo movimenta-se ao nosso encontro e em uníssono e bem alto dizem:" caloiras!!!!!" Minha amiga fica nervosa e começa a balbuciar que não o era sem conseguir de todo convencer o grupo. Enquanto a "raptam" de mim e a levam, outro "doutor" olha para mim e diz:" Tu também és!" Serena, olho-o nos olhos e digo:"Não! Sou do 2º ano!! Queres ver meu cartão?" Perante tanta firmeza, deixou-me e foi ter com o restante grupo que estava já a "tratar" da minha colega. Enquanto a carimbavam no rosto com palavras simpáticas do género " burro" entre outras, eu olhava para ela e pensava:" Bem, se vim com ela e ela vai ser praxada, o melhor é ser solidária e acompanha-la..." E assim foi. De repente virei-me para o grupo e disse calmamente:"Eu também sou!" Num rompante a sala encheu-se de euforia só para me carimbar também!!!

Saímos com camisolas da Instituição, orelhas de burro na cabeça e cara toda pintada com carimbos e bigodes. Colocaram-nos aos pares e em fila todos agarrados com latas no pés. Era a latada dos caloiros! Desfilamos pelo centro da cidade enquanto cantávamos a canção que nos era destinada. Não me lembro da letra, mas a música era ao estilo da tropa e nessa época havia um anúncio de tintas idêntico. E eu, no fundo da fila, em vez de cantar a original, a dado momento lá estava eu a trocar tudo e cantava a do anúncio, assim:"Stucomate é 1 grande tinta, Stucomate é Robbialac..." Vinha mesmo a propósito de tanta tinta que tínhamos na cara, mas o "doutor" ao meu lado, a controlar-se para não se rir, mandava-me calar dizendo:" Caloiro, canta como deve de ser!" Parava, mas dali a poucos minutos lá estava eu a trocar tudo de novo... Como castigo, deu-me um frasco fedorento para segurar  enquanto caminhava. Quando viu que eu estava a "perfumar" o passeio com ele, retirou-me logo das mãos divertido. É que a poção era preciosa e fazia talvez falta para outras coisas. Dali fomos para o fontanário proceder ao nosso baptismo. Com uma colher de pau enorme, derramavam água sobre as cabeças oficializando assim a nossa entrada no ensino superior. 

Nunca se constou que ali os responsáveis pelas praxes tivessem praticado algum abuso. E nesse tempo também nunca ouvira falar de praxes violentas fosse onde fosse. Estes excessos poderão ter nascido de uma geração que também ela mudou muito. Não sei. Porém, duma coisa não duvido: algo tem de mudar rapidamente. Ou se elimina por completo, ou se cria um modelo de praxe aceitável e se transpõe isso em decreto-lei obrigando ao seu cumprimento dentro daqueles parâmetros, sob a responsabilidade das reitorias de fiscalizarem todo o processo.  

O que não se pode é ser dúbios nesta matéria porque nada repara uma perda humana. Seis mortes num dia foi a gota de água que faltava para transbordar  copo.  

O PREÇO DA SINCERIDADE

Nem sempre fui assim. Totalmente sincera. Como toda a gente, quando era mais jovem, por necessidade de integração nos grupos, repetia aos outros o que eles queriam ouvir para não ser rejeitada, colocada à parte. Já de pequena tinha consciência que para ser popular, não se podia ser sincero. Mas ao amadurecer decidi não lutar mais contra minha natureza e aprendi que o melhor teste à veracidade das relações, é sermos genuínos. Uns ficarão adorando o nosso verdadeiro "eu", outros partirão porque não lhes enchemos o ego. A nossa sinceridade filtrará os que nos rodeiam e a multidão desaparece deixando lugar apenas aos mais leais.  

Aparentemente, o preço a pagar pela nossa sinceridade é muito elevado e muitos não suportam ficar isolados num grupo minúsculo de pessoas autênticas. Mas eu não. Perdi a popularidade mas ganhei qualidade nas minhas relações interpessoais. Hoje tenho a certeza de que sou rodeada de gente como eu capaz de me dizer no rosto o que sentem e não temo pelo que dirão na minha ausência. Porque dirão o mesmo que pela frente: a verdade. 

Ser sincero não é fácil. Recordo a propósito, um episódio em que uma amiga, toda entusiasmada por ter feito uma tatuagem, vir eufórica pedir a minha opinião sobre ela. Outras no grupo já lhe tinham dito que era espectacular, linda! Mas ela queria também saber o que eu  pensava. Assim que lhe vi o ombro pensei:" Como lhe vou dizer isto? Isto está horrível!" Delicadamente olhei para ela nos olhos e disse-lhe: " Não me tomes a mal, mas essa tua rosa parece mais uma couve de bruxelas! Felizmente que é temporária!" Nunca mais me esqueci do olhar que ela me deitou. Um misto de raiva e desilusão que ela não soube disfarçar. Afinal eu tinha ousado dizer "mal" da tatuagem quando todas as outras a elogiaram... Escusado será dizer que ela andou desconfortável comigo durante algum tempo até que eu a obriguei a falar sobre o assunto explicando-lhe que, uma verdadeira amiga não diz o que convém ouvir mas sim a verdade e que a verdade era que aquela tatuagem estava mal feita. Pouco tempo depois, as outras, vendo que eu tinha tido coragem de dizer o que elas não foram capazes, acabaram por lhe dizer também:" Sabes, ela tem razão, isso não parece muito uma rosa..." A partir dali, a nossa amizade nunca mais foi a mesma. Solidificou. Intensificou-se. Éramos unha e carne. E ela nunca mais aceitou ouvir outros conselhos senão de mim... 

Hoje eu não sei ser de outra forma. Mesmo que doa, prefiro ser sincera a agradar por agradar. Seja num conselho, seja numa opinião, seja num relato da vida privada, as pessoas sabem o que esperar de mim porque me revelo sem véus e ponho-me a nu sem complexos sem medos do que os outros pensem. Sou translúcida e logo inspiro a confiança dos que me seguem. E aos meus filhos a quem transmiti os mesmos valores, a quem me mostrei sempre com mais erros que virtudes, orgulha-me vê-los perpetuar a sinceridade como a essência das relações. E hoje sei que me rodeio de verdadeiros "eus" que sabem que a lealdade que em mim transborda é a maior prova de amizade que alguém pode ter.

A falsidade já não me acompanha mais graças à coragem de um dia ter preferido o caminho da sinceridade. E mesmo correndo o risco de ser mal compreendida, ser genuína não tem preço. 



    

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

À NOITE NO MECO



Um grupo de jovens aluga uma casa, vestem-se a rigor e dirigem-se à praia naquilo que tudo indica ter sido um ritual de praxe académica. Aproximam-se das ondas e são engolidos por elas... Um sobrevivente seguido de um silêncio ensurdecedor, não explica nem diz nada. Fecha-se em casa como se tivesse direito a negar respostas a quem numa noite vê ceifada a vida de um filho. 

Percebo a angústia de quem inesperadamente vê a tragédia acontecer mesmo em frente aos seus olhos. Percebo o choque de ver tantos amigos a serem arrastados em noite escura. Eu entendo que não deva ser fácil sequer pronunciar os nomes deles. Mas consegue alguém ficar amordaçado por episódio tão brutal ao ver a dor cravada nos rostos dos pais órfãos?  

Não se trata de julgar ninguém até porque, repito, são episódios tão dolorosos para quem presenciou como para quem perdeu alguém no mar. Mas parece-me que os nossos jovens perderam valores tão importantes que os torna vazios e sem carácter. E os pais? Que fazem eles para ajudar realmente o filho? Com que consciência viverão eles o resto da vida? 

Este episódio faz-me lembrar um que vivi de perto há já alguns anos. Por um lado estava um familiar, por outro, a família da vítima de quem eu era amiga. Foi-me pedido ajuda porque a mãe andava desesperada e só queria saber o que lhe tinham feito à filha. O sofrimento daquela mãe rasgava-me por dentro. Ela só queria respostas. Mas ninguém lhas deu. Até hoje não sabe do paradeiro da filha. Também não lhe pode fazer o luto mesmo sabendo que ela nunca poderia estar hoje viva... Mas apesar dos apelos que ela tanto fez para sensibilizá-los, o silêncio foi o caminho encontrado para escamotear a verdade. Tudo isto apenas porque supostamente alguém queria proteger um filho de ser apresentado à justiça. Porque entende-se que vale tudo só para evitar que se saiba, que se conste, que se fale no assunto. Esconder dos outros mentindo parece ser mais correcto do que entregar a verdade a uma mãe destruída pela dor. Porém, ninguém na freguesia tem dúvidas sobre a culpabilidade nem mesmo a judiciária. Vale a pena pagar com a consciência um episódio que nos atormentará para o resto das nossas vidas em detrimento de, pelo melhor ou pior, viver tranquilo e de acordo com os valores humanos?   

Quando se tem um carácter deformado o caminho da mentira é o mais sedutor. A cobardia de enfrentar o outro lado, e por muito que custe, falar com dignidade sobre os factos de que nos acusam, traz ao de cima o que de pior tem o ser humano: egoísmo. 

Por cá, também já se viveu nos limites. E quando falo, faço-o com conhecimento de causa. Infelizmente. Porque não basta apontar aos outros, é preciso ser-se um exemplo do que se afirma. E nós, ao contrário destes, quando as pessoas comentem actos graves, quando erram e comprometem a vida dos outros, não nos escondemos, não nos coibimos de resolver no local certo as questões sejam elas depois do domínio público ou não. Não temos medo porque não somos criminosos e logo, a justiça vem ao nosso encontro. Não fugimos. Não mentimos. Não escondemos. E as pessoas envolvidas por muito que as amemos acabam por compreender que esse foi o caminho certo porque a vida depois acaba por devolver em dobro o  bem feito aos outros... E as consciências tranquilas e em paz porque foi feito o que tinha de ser feito. 

O silêncio do Meco poderá impedir a justiça de repor a verdade mas jamais deixará viver quem dos seus deveres se demitiu... 


sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

UMA TIA FRANCESA

Enquanto remexia numa caixa do passado, encontro uma carta dirigida ao meu tio. Ao lê-la, as memorias reavivavam e novamente a revolta tomava conta de mim. Na carta, uma das irmãs acusava esta minha tia de ser a causa do afastamento dos irmãos. Mas como é possível de forma tão brejeira, acusar alguém quando se sabe que o cerne dos desentendimentos cabe à responsabilidade apenas e somente a cada um deles? Fico estupefacta com a audácia de alguns que não se coíbem de dizer, não importa o quê só para justificar os seus falhanços interpessoais. Na verdade, não há ninguém que sozinho  seja responsável por tamanha balbúria de intrigas e amargos de boca.

É preciso recuar-se no tempo para perceber quem é esta minha tia e porque a condenam. Quando se conheceram, ela e meu tio eram muitíssimo novos. Casaram cedo e contra a vontade do meu avô que não queria na família uma francesa. Mas o amor por esta mulher falou mais alto. Meu tio sempre foi um homem atraente que facilmente se fazia rodear de atenções femininas. E minha tia, como qualquer mulher que ama intensamente, tentava proteger o que era seu. Um começo de vida de casados um pouco atribulada fizeram com que nascessem inseguranças por parte dela que logo soube colmatar, não o perdendo nem um minuto de vista, indo para todo o lado na sua companhia. É verdade que ela não mostrava satisfação quando os homens da família combinavam saídas sozinhos. E também, que usava todas as suas armas femininas para o demover. Mas não seremos todas um pouco assim?

A verdade é que, mesmo sem o pronunciarem abertamente sentia-se no ar o incómodo que esta mulher provocava no seio da família. Facilmente se ouvia algum a referir-se a ela como a francesa em vez do nome. Um certo desdém por alguém que acima de tudo primava pela diferença. O embaraço terá surgido muito cedo. Ela, francesa de gema, esbelta e bem vestida na moda daquela época, contrastava junto das portuguesas de estilo provinciano num país fechado ao mundo pela ditadura. O estilo e beleza terá encantado meu tio e o amor  que este lhe dedicava, incomodado quem com eles privava...

É certo que nem tudo nela será virtude e tal como nós, terá o seu lado lunar. Eu, apesar de gostar muito dela, também tive as minhas decepções, porém facilmente perdoáveis num universo de real bondade que ela possui e me dedicou. E de facto se ela não fosse uma pessoa com grandes qualidades humanas, minha avó de quem se tornou muito amiga, nunca a teria feito confidente e sua cúmplice. Graças a esta minha tia, a minha avó encontrou o ombro, e o único,  que tanto precisava e sobretudo alguém que não temeu enfrentar o tirano do meu avô por diversas vezes. Os laços afectivos eram tão intensos que, assim que soube que eles teriam de partir de novo, deixando-a novamente sozinha, minha avó mergulhou numa tristeza profunda. Acusaram-na (por ignorância) de nem aos seus ela acudir. Uma falsidade tão grande quanto outras tantas ditas à toa. De facto minha tia teve cá sua mãe. Cuidou dela mas... a ingratidão dessa senhora e génio malvado fez com que tomassem a decisão de a levar de volta a França. E minha tia paterna mais nova, que ousou pronunciar-se contra eles, acabaria por constatar, ao meter-se onde não era chamada, que afinal eles estavam cobertos de razões para actuarem daquela forma. Mas infelizmente, daquele lado, reina a amnésia...

Quando iniciei o meu processo de divórcio, ela telefonou-me lavada em lágrimas, em sofrimento perguntava o que se tinha passado e pedia para ter calma. Mais tarde e já divorciada, esta mulher, ao contrário de todas as restantes da família,  nunca me viu como uma adversária, "aceitou-me" de volta  sem me marginalizar, sem me apontar nada e de braços abertos e sinceros fez-me parte do seu mundo. Foi a única que depois do meu divórcio novelesco quis saber por mim o que realmente se tinha passado. E acabou por me revelar todos os comentários que tinham circulado durante esses dois anos do meu afastamento. Em pouco tempo tornámo-nos muito amigas partilhando tudo e mais alguma coisa. Confiava nela e nunca mas nunca tive um motivo que me alertasse para ter cautela. Ela é genuina, sincera e sensível e por isso poucos conseguem compreendê-la.

Fui depois convidada por 2 vezes a passar umas férias em França junto deles. Ela levantava-se às 6h da manhã para ir comprar croissants quentinhos, a sair do forno para o meu pequeno almoço só porque lhe tinha confidenciado que adorava... croissants! Deixou de trabalhar 1 semana apenas para poder estar comigo e levar-me a desfrutar da cidade e levar-me a passear... Dormia na sala com meu tio enquanto me acomodava no seu quarto. Cobria-me de mimos não se coibindo dos gastos só para me ver feliz e proporcionar-me as melhores férias da minha vida. Ela sabia que eu nunca tinha viajado, ela sabia que nunca tinha tirado férias. Tudo o que ela queria era tornar esses momentos inesquecíveis. E conseguiu.

Ainda hoje, não esqueço o apoio que ela dá à minha mãe sempre que ela precisa. Sabendo-a sozinha com o meu pai incapacitado, ao mais pequeno pedido, ela acorre imediatamente contrariando completamente o perfil que fazem dela.

Eu sei que para algumas mulheres não é fácil compreender o amor de um homem por uma mulher assim. Mal amadas, resistem a ver e se vêem logo arranjam forma de o destruir. Meu tio optou cedo por defendê-la e apoia-la acima de tudo porque cedo constatou que era a única pessoa leal e sincera que lhe valeria na vida. Os outros, que tanto se auto-intitulam de fraternos e amigos são pessoas vãs cujos afectos não resistem sequer a coisas tão simples como o ter opinião diferente às suas. São gente que sorri muito mas só até nos afastar-mos. Percebeu  que são gente que não aceita nem respeita um "não" e partilham valores diferentes aos seus. Mas acima de tudo percebeu que não a aceitavam, que não a amavam e por isso ao longo dos anos quis afastar-se para defender a sua princesa.

Que venha agora o primeiro e lhe atire uma pedra...





 


DIÁRIO DE UMA MEMÓRIA PERDIDA - ÁGUA VS CAVALO

O meu pai passou de bestial a besta em menos de um piscar de olhos. Elogiado por todos os irmãos durante as partilhas, depressa azedaram as relações entre 5 deles assim que ele se quis impor sobre determinados acontecimentos com os quais ele não estava de acordo.  Com efeito, unilateralmente, sem dar a conhecer ao próprio, uma das irmãs resolve colocar um cavalo na sua propriedade, contígua à do meu pai mas sem barreiras permitindo que ele andasse livremente sobre todas as propriedades vizinhas. Este assunto poderia ter tido um desfecho diferente caso essa irmã tivesse préviamente consultado meu pai sobre o caso. Mas, tal como em tantas outras coisas, nesta família, todos se acham com direitos mesmo sobre aquilo que já pertence a outros e por isso essa conversa nunca aconteceu. Por outro lado, a mesma sabia que dificilmente se entenderiam por causa de cartas acusatórias recebidas aquando da doença da minha avó... Quando meu pai toma conhecimento do que se estava a passar, ordenou que fosse retirado de lá o animal. Enquanto isso, procedeu ao muramento da propriedade. Só este episódio valeu-lhe amargas trocas de palavras mas a história não ficava por ali... Quisera o destino que a propriedade da irmã inundasse e acto imediato, a solução encontrada pela mesma passava por partir o muro existente pertencente ao meu pai para fazer fluir a água... Mais uma vez, sem o conhecimento dele, claro! Alertado pelo irmão do meio, tomou imediatamente medidas mesmo que as mesmas recaíssem sobre o seu próprio pai que era o autor dos estragos! De facto, meu avô, agiu àquela época em consonância com a filha independentemente de saberem ambos que não podiam agir assim. Como autor dos danos, meu pai resolveu levar o assunto a tribunal onde a dado momento, quando lhe perguntam o que o levou a queixar-se, ele respondeu:" Eu não quero indemnizações. Eu quero com isto que meu pai entenda que já cresci e que a fase de andar connosco  a ponta pé como quando éramos miúdos, já acabou."    

Na verdade, respeito pelas opiniões dos outros, pelas coisas dos outros não é coisa que abona por aqueles lados. E por isso, quando meu pai discordou da forma como estavam a deliberar sobre os cuidados à sua mãe, quando meu pai se impôs por causa do cavalo, quando meu pai nomeou o irmão do meio para lhe cuidar dos seus assuntos e quando tentou impedir que lhe alagassem a propriedade com água, os 5 irmãos, por contágio, cortaram relações com ele.  

Não há mentira maior do que a meia verdade porque apenas a parte da mentira é que é revelada. E nesta história como em todas vividas na família paterna, nunca se conta os factos revelando todos os pormenores doam a quem doer. Contorna-se aqui, esconde-se ali, acrescenta-se acolá e no final temos relatos impressionantes distorcidos, manipulados para dar ênfase ao lado que mais interessa. 

Felizmente há outros que, mesmo contra si ou outros, têm coragem de relatar os eventos sem pinceladas para agradar. Eu sou uma delas.   

   

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

A MINHA AVÓ DOS OLHOS TRISTES


Maria era seu nome. Franzina, pequenina e ligeiramente curvada pela idade e vida dura de quem criou 7 filhos na lavoura, minha avó tinha uma imagem de mulher meiga, discreta  e doce que não passava despercebida a ninguém. Os 9 anos que a separava do meu avô eram por demais visíveis sobretudo quando nada tinha sido feito para a poupar.

Inicialmente e porque só a conheci aos 10 anos, nunca me apercebera de nada. Pelo contrário, admirava o meu avô pelo carinho que lhe parecia dedicar. Sempre atencioso, apelidava-a de "minha santa". E ela com um sorriso irónico replicava com humor. Habituei-me a vê-los como um exemplo daquilo que queria um dia para mim, um exemplo de um amor duradouro capaz de ultrapassar décadas de adversidades. Admirava-os e mais a ele por ser tão extremoso.

Porém, os anos foram passando,  e mulher sofrida que também passei a ser, comecei a ver sinais até então ocultos. Nunca comentei o que pressentia com ninguém até ao dia em que minha mãe muito naturalmente, revela que minha avó tinha doado sua reforma à Igreja!!!  Num ápice era como se as suspeitas de anos e anos, revelassem o que sempre soubera: minha avó era muito infeliz! Desde então fiquei sedenta de saber mais,  perguntando a quem tinha privado com ela, tudo o que sabiam. E aos poucos, num episódio aqui, outro ali, foram-me revelando a sua triste história...

Contava-se, entre outras coisas, que meu avô, ainda com os filhos pequeninos, a colocava  em frente aos bois e que por ter já dificuldades de mobilidade nessa época, tropeçava com frequência e caia. Quando tal acontecia, ele na parte de trás da carroça, ao aperceber-se, dava bastonadas nos animais, que a levavam de rasto durante alguns metros... Certo dia, por defender um filho, meu avô, ainda em França, escrevera-lhe uma carta que a deixou em "estado vegetativo" durante dias, tal era a violência das suas palavras. Era frequente naquela casa, os pratos voarem com comida assim como chamarem por ela como quem chama por um animal. Todos os dias era-lhe debitado trabalho duro, sem direito a descanso merecido pelas suas debilidades e muito menos um elogio. Entre quatro paredes a voz austera e modos brutos do meu avô contrastavam com a suavidade das suas palavras meigas na presença de outros.  Certo dia nem sequer  se coibiu de sair com amigos a Fátima deixando-a a poucos dias de parir mais um filho...  Acabou por tê-lo sozinha...  Perante a complacência de alguns filhos, que nunca ousaram enfrentar a tirania do pai, minha avó sofreu silenciosamente aguentando como uma guerreira toda a violência psicológica sofrida durante décadas. A chegada definitiva de um filho que acabara de construir casa mesmo ao lado, abriu-lhe novos horizontes de esperança onde se apoiou o mais que pude: primeiro denunciando junto da nora as barbaridades que ele lhe infligia diariamente, e, usando-a como sua cúmplice, pedia-lhe para ficar junto dela na horta e que ouvisse quando ele a chamava, testemunhando assim a forma animalesca como era tratada. Pedia ainda que entrassem pela casa de surpresa, sempre que pudessem, para ouvirem e presenciarem os maus tratos, que ele depois, teatralmente disfarçava . Pela primeira vez demonstrava assim que queria ser protegida, que tinha medo e de forma muita discreta dava um grito de alerta. O regresso a França do seu filho  troca-lhe as voltas e numa tristeza profunda despede-se da nora que a amparara.

Numa fase já mais terminal ousou premiá-lo, e de luva branca deu-lhe a maior bofetada da vida dele: minha avó retribuía a dedicação recebida durante toda a sua vida doando a sua reforma à Igreja! O padre, a quem lhe tinha sido confiado o seu "segredo", no dia da sua despedida, revela-o para espanto de todos, afirmando em alta voz que "agora já ninguém lhe podia fazer mal..." deixando "cair" o sentimento de medo que a atormentara. E meu avô, que se tinha negado a ir ao seu funeral alegando querer guardar a imagem de sua mulher em vida, estava afinal a disfarçar a grande revolta que a decisão dela lhe causara...

Desde então passei a admirá-la como nunca e a adorar o apelido que carrego. Sim, porque, coincidência ou não, não tenho o apelido do meu pai mas sim... o dela! Por ironia do destino constatei  que tínhamos vidas comuns e sofrimentos partilhados. Que até minha bisavó, também paterna, de quem, dizem, tenho muitas parecenças físicas, foi uma heroína  sem precedentes nas batalhas da vida, tal como eu...

Recordar a minha avó é dar voz ao sofrimento de muitas mulheres que como ela, são ou foram sofredoras solitárias, prisioneiras do medo, que ninguém quer resgatar porque simplesmente, ninguém quer ver.

A ela dedicarei o meu primeiro livro.