Maria era seu nome. Franzina, pequenina e ligeiramente curvada pela idade e vida dura de quem criou 7 filhos na lavoura, minha avó tinha uma imagem de mulher meiga, discreta e doce que não passava despercebida a ninguém. Os 9 anos que a separava do meu avô eram por demais visíveis sobretudo quando nada tinha sido feito para a poupar.
Inicialmente e porque só a conheci aos 10 anos, nunca me apercebera de nada. Pelo contrário, admirava o meu avô pelo carinho que lhe parecia dedicar. Sempre atencioso, apelidava-a de "minha santa". E ela com um sorriso irónico replicava com humor. Habituei-me a vê-los como um exemplo daquilo que queria um dia para mim, um exemplo de um amor duradouro capaz de ultrapassar décadas de adversidades. Admirava-os e mais a ele por ser tão extremoso.
Inicialmente e porque só a conheci aos 10 anos, nunca me apercebera de nada. Pelo contrário, admirava o meu avô pelo carinho que lhe parecia dedicar. Sempre atencioso, apelidava-a de "minha santa". E ela com um sorriso irónico replicava com humor. Habituei-me a vê-los como um exemplo daquilo que queria um dia para mim, um exemplo de um amor duradouro capaz de ultrapassar décadas de adversidades. Admirava-os e mais a ele por ser tão extremoso.
Porém, os anos foram passando, e mulher sofrida que também passei a ser, comecei a ver sinais até então ocultos. Nunca comentei o que pressentia com ninguém até ao dia em que minha mãe muito naturalmente, revela que minha avó tinha doado sua reforma à Igreja!!! Num ápice era como se as suspeitas de anos e anos, revelassem o que sempre soubera: minha avó era muito infeliz! Desde então fiquei sedenta de saber mais, perguntando a quem tinha privado com ela, tudo o que sabiam. E aos poucos, num episódio aqui, outro ali, foram-me revelando a sua triste história...
Contava-se, entre outras coisas, que meu avô, ainda com os filhos pequeninos, a colocava em frente aos bois e que por ter já dificuldades de mobilidade nessa época, tropeçava com frequência e caia. Quando tal acontecia, ele na parte de trás da carroça, ao aperceber-se, dava bastonadas nos animais, que a levavam de rasto durante alguns metros... Certo dia, por defender um filho, meu avô, ainda em França, escrevera-lhe uma carta que a deixou em "estado vegetativo" durante dias, tal era a violência das suas palavras. Era frequente naquela casa, os pratos voarem com comida assim como chamarem por ela como quem chama por um animal. Todos os dias era-lhe debitado trabalho duro, sem direito a descanso merecido pelas suas debilidades e muito menos um elogio. Entre quatro paredes a voz austera e modos brutos do meu avô contrastavam com a suavidade das suas palavras meigas na presença de outros. Certo dia nem sequer se coibiu de sair com amigos a Fátima deixando-a a poucos dias de parir mais um filho... Acabou por tê-lo sozinha... Perante a complacência de alguns filhos, que nunca ousaram enfrentar a tirania do pai, minha avó sofreu silenciosamente aguentando como uma guerreira toda a violência psicológica sofrida durante décadas. A chegada definitiva de um filho que acabara de construir casa mesmo ao lado, abriu-lhe novos horizontes de esperança onde se apoiou o mais que pude: primeiro denunciando junto da nora as barbaridades que ele lhe infligia diariamente, e, usando-a como sua cúmplice, pedia-lhe para ficar junto dela na horta e que ouvisse quando ele a chamava, testemunhando assim a forma animalesca como era tratada. Pedia ainda que entrassem pela casa de surpresa, sempre que pudessem, para ouvirem e presenciarem os maus tratos, que ele depois, teatralmente disfarçava . Pela primeira vez demonstrava assim que queria ser protegida, que tinha medo e de forma muita discreta dava um grito de alerta. O regresso a França do seu filho troca-lhe as voltas e numa tristeza profunda despede-se da nora que a amparara.
Numa fase já mais terminal ousou premiá-lo, e de luva branca deu-lhe a maior bofetada da vida dele: minha avó retribuía a dedicação recebida durante toda a sua vida doando a sua reforma à Igreja! O padre, a quem lhe tinha sido confiado o seu "segredo", no dia da sua despedida, revela-o para espanto de todos, afirmando em alta voz que "agora já ninguém lhe podia fazer mal..." deixando "cair" o sentimento de medo que a atormentara. E meu avô, que se tinha negado a ir ao seu funeral alegando querer guardar a imagem de sua mulher em vida, estava afinal a disfarçar a grande revolta que a decisão dela lhe causara...
Desde então passei a admirá-la como nunca e a adorar o apelido que carrego. Sim, porque, coincidência ou não, não tenho o apelido do meu pai mas sim... o dela! Por ironia do destino constatei que tínhamos vidas comuns e sofrimentos partilhados. Que até minha bisavó, também paterna, de quem, dizem, tenho muitas parecenças físicas, foi uma heroína sem precedentes nas batalhas da vida, tal como eu...
Recordar a minha avó é dar voz ao sofrimento de muitas mulheres que como ela, são ou foram sofredoras solitárias, prisioneiras do medo, que ninguém quer resgatar porque simplesmente, ninguém quer ver.
A ela dedicarei o meu primeiro livro.
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