segunda-feira, 29 de setembro de 2014

VIVER 100 ANOS




A maioria das pessoas tem medo de envelhecer. Eu, tenho medo de perder a minha saúde...ao envelhecer. Sempre tive consciência que o pior da vida era terminar  sem lucidez, sem capacidades motoras, carregada de doenças de todo o género e quando vejo senhoras que completam 100 anos de vida cheias de vigor e saúde, sinto uma inveja enorme por não saber se terei um dia tamanha benção! 

Num pastel de nata três velas com os respectivos algarismos que não deixavam dúvidas: 100 anos!, apesar de uma jovialidade que lhe dava apenas 70! Divertida, aluna da Universidade Sénior, completamente autónoma e a viver sozinha, explicava que talvez o segredo da sua longevidade fosse o rir  muito e que o único problema em viver tanto era ser sempre a mais velha em todos os sítios que entrava. A transbordar de humor, esta senhora é tudo o que eu um dia desejava ser. Sem peles esticadas, sem tintas no cabelo, completamente de acordo com a idade mas linda muito linda, por fora e por dentro. É impossível ficar-lhe indiferente de tanto que sorri como se a vida secular que transporta tivesse sido palaciana. Mas não. Foi sofrida, foi penosa, foi desafiante, foi emotiva como tantas outras vidas. Mas aqui não há lugar a lamentos. Agradece-se tudo o que se tem e não se pede mais do que isso. 

O segredo da longevidade não está apenas no que comemos como agora tanto se fala. O segredo está sobretudo na forma como encaramos a vida e a vivemos. E não  tenho dúvida alguma que aquilo que mais acrescenta dias à nossa curta passagem terrena,  é o positivismo com que acordamos todos os dias para os desafios da nossa jornada por cá. Gente que encara a vida com um sorriso, que vive feliz com o que tem,  acrescenta dias aos dias que já tem. Liberta endorfina, analgésicos naturais que os inibem da dor, serotonina responsável pela sensação de prazer que fortalece o seu sistema imunitário. O sorriso combate a depressão e o stress, diminui a pressão arterial, melhora a digestão e até deixa a pele mais bonita. 

Por isso, não é de espantar que pessoas com esta natureza vivam mais e mais bem conservadas que as outras. Porque se tudo se justificasse apenas pelo que comemos, não teríamos vegetarianas como Brigitte Bardot com aspecto horrível aos 80, nem esta senhora assumidamente omnívora tão bela e saudável aos... 100.

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

AMOR ELECTRÓNICO

Chamem-me antiquada que eu não me importo. Mas para mim, as melhores relações são construídas à moda antiga. Olho no olho, mão na mão com conversas longas a perderem-se no tempo. Olhos que namoram a boca que fala, apreciando-lhe todas as curvas com prazer, que debitam palavras e mais palavras sobre assuntos mais íntimos ou triviais, e que intensificam os laços entre os interlocutores. 

Por isso não entendo como podem estes novos amores sentarem-se lado a lado, de telemóvel na mão, teclando cada um para seu lado, completamente embrenhados naquele dispositivo, esquecendo por completo que estão ali, acompanhados um do outro. Não se tocam. Não se falam. Desligam-se momentaneamente apenas para engolirem à pressa a bica que entretanto chegou à mesa...  E retomam as suas conversas secretas num mundo virtual que os leva para bem longe dali.

Enquanto desfruto da minha leitura matinal sempre acompanhada de um cafézinho gostoso, observo em meu redor os amores electrónicos que povoam a sala. Um quadro deprimente onde famílias, casais e até grupo de amigos se agarram àqueles dispositivos como se tivessem íman e fosse impossível largá-los por uns minutos! Uma obsessão quase doentia que destrói uma das coisas mais belas da vida: as relações pessoais.

As novas tecnologias são de facto um invento maravilhoso quando utilizadas de forma correcta e disciplinada. Quando isso não acontecesse, as pessoas tornam-se escravas e sem darem por isso, caminham distantes e vazias. É a estupidificação em massa de gente que já não sabe viver sem fazer uma actualização ao perfil na rede social, sem espreitar a toda à hora o que por lá se passa e que fica mais doente por não se conseguir conectar com a rede do que com a ausência das pessoas que com eles privam.

Assisto a tudo isto com alguma nostalgia dos tempos em que sem telemóveis e muito menos androides, nos entregávamos ás longas conversas pela madrugada fora, onde a única coisa que nos interrompia  eram as horas tardias e o ter de levantar para trabalhar no dia seguinte. Tempos de amores mais genuínos, onde os afectos eram mais intensos, e a relações muito mais próximas.  


quarta-feira, 3 de setembro de 2014

DIÁRIO DE UMA MEMÓRIA PERDIDA - VOLTA!





Perdi-te. Nem me lembro mais quando... Partiste sem aviso e deixaste-me aqui sozinha com este teu corpo gasto pela idade mas ainda com tanto vigor. Podias ter deixado a tua nova morada, podias pelo menos dizer onde te posso encontrar, mas não. Partiste sem dizer para onde ias nem quando voltavas. E eu aqui sozinha à tua espera... 

Procuro-te no teu olhar e quantas vezes te vi, mesmo ali, para desapareceres repentinamente, outra vez como se fugisses de alguém, voltando para o teu mundo onde ninguém entra. Só tu. Tenho raiva do teu corpo que te aprisiona como uma fortaleza intransponível e que nos separa daquilo que fomos um para o outro. Se ao menos tivesse uma chave para te abrir e me juntar a ti sempre que para lá fosses. Mas não tenho nada, mesmo nada para te poder alcançar.  Resigno-me a esperar aqui para que voltes por breves minutos ou segundos que eu absorvo sedente de ti. 

Deixaste um vazio tão grande, sabias? Era suposto partires velhinho, muito velhinho como todos os velhinhos vão. Mas foste embora tão cedo e  com tantos momentos ainda para partilharmos, tantos risos, tantos choros, tantas conversas, tantas histórias... Tantas coisas pai, que ficaram por fazer... por dizer... Como vou eu preencher este vazio imenso que deixaste nas nossas vidas?

A culpa é tua que te lembraste de repente fingir que estavas a melhorar correndo a casa toda, sorrindo como nunca, falando quase consciente... Fazes acreditar que estás de volta. Que regressas pouco a pouco a casa. Mas eu sei que não passa de uma brincadeira do destino, não é? Foste para não mais voltar.

Mas diz a quem te segura aí,  que precisas de regressar. Que tens filha e neta para cuidar. Que deixaste muito por fazer, muitas lutas por amparar. Que eras a essência de duas vidas que sem ti viverão amputadas... Diz-lhes que não sabemos existir sem ti... Diz-lhes tudo o que quiseres... Mas volta pai...    


sexta-feira, 22 de agosto de 2014

DIÁRIO DE UMA MEMÓRIA PERDIDA - QUEM QUER FLORES DEPOIS DE MORTO?

Há pessoas que não largam as igrejas fazendo delas as suas segundas casas; que se auto-promovem como seres divinais que transbordam de bondade e altruísmo. No entanto, na hora da verdade, não passam de seres ocos e falsos que gastam apenas energias em dissimular aquilo que realmente são para venderem uma imagem que não existe de si mesmos. Não faltarão a um grande evento de solidariedade amplamente divulgado e onde serão notados na sua pressuposta bondade, mas faltarão onde serão precisos mas ninguém os vê, não tendo louros para colher.     

Existem uns magníficos assim na família do meu pai.  Souberam, há muitos anos que o meu pai padecia de uma doença irreversível. Souberam também que, já não podia, pelos seus próprios meios, usufruir das suas companhias, mas ignoraram-no. Fizeram de conta até ao dia de hoje, que ele simplesmente não existia. E nas suas vidas cinzentas e enfadonhas continuaram nos seus mundos alheios a tudo que se passava com o irmão mais velho. Alheios, ponto e vírgula! Não o visitam mas são leitores assíduos da minha crónica sobre a demência dele... Não deixa de ser curioso... de facto. Espiar o que se vai passando do lado de cá, interessa. Dar-lhe um beijo, um carinho, um abraço, não! 

Porém tenho a certeza, que estas criaturas não vão poupar dinheiro a depositarem flores na sua cova. Não vão poupar lágrimas na sua despedida. Todos trajados a rigor aparecerão para a fotografia social porque impera mostrar aos outros a família magnífica que são. Entretanto, lá estarei eu, no grande evento, sedenta de os desmascarar a todos. De lhes arrancar das faces essa máscara cravada em seus rostos de tanto que dela fizeram uso. Pouco me importará se é a casa de Deus porque Deus, se existe, está com certeza do lado dos justos. E justiça é varrer os vermes dos lugares sagrados por não  se redimirem e pedirem perdão a quem por eles tudo fez e nada, mas nada mesmo, recebeu.

Quem é que quer flores depois de morto? Visitas à sua morada final? Ninguém. O que se leva desta curta passagem são as memórias. E quem não as procura dar em vida, que tenha pelo menos  a dignidade de faltar na despedida.   

DIÁRIO DE UMA MEMÓRIA PEDRIDA - O RETROCESSO

É deveras curiosa esta doença do meu pai. Quando tudo indicava que ele estaria a evoluir na enfermidade com sinais evidentes de uma progressão profunda e sem retorno, e eis que a reviravolta se dá com se de um milagre se tratasse. Preso a uma cama, sem sorrisos, sem falas, com os dias passando recuperou todo o vigor que perdera. Sorrisos largos e esplendorosos são o cartão de visita para quem chega. E ai! que saudades eu tinha desse riso aberto e caloroso! Dessa gargalhada, embora tímida, que já não se ouvia há tanto tempo! E ele que não se mexia para nada, é vê-lo a andar todo hirto em direcção à casa de banho quando a natureza o chama! Qual fraldas qual quê! Estão lá só para garantir que não há descuidos... Passeia-se pela casa, vai até ao quintal e volta todo satisfeito depois de se assegurar que o seu carro continua na garagem. Aquele mesmo carro com o qual matava o desejo de uma paixão: conduzir. Não recuperou totalmente a fala, o raciocínio. Parece que o cérebro não quer de todo acompanhar o corpo nesta magnífica evolução. Mas há melhoras significativas. Curiosamente lembra-se mais vezes ao dia das pessoas que o rodeiam. E tem rasgos de lucidez impressionantes que, sem querer, nos levam quase a acreditar que ele um dia acordará dizendo: "Ei, pessoal! Regressei ao Mundo dos lúcidos!!" Tenho dias, confesso, em que quero acreditar nisso. Afinal não há gente que volta a andar? Porque não haveria um milagre assim para o meu pai...   

Há um retrocesso na doença. Disso não tenho dúvida. É como se ela tivesse sido adiada, por tempo indeterminado. E inevitavelmente, dou por mim a pensar como seria bom, se fosse possível, este processo voltar a trazer o pai que perdi...    

domingo, 10 de agosto de 2014

MEU QUERIDO MÊS DE AGOSTO

O mês de Agosto é por excelência o período escolhido para se tirar férias. E por isso transborda de turistas ávidos de sol e boa comida portuguesa e emigrantes saudosos da sua gente. O problema é o espaço, e como Portugal não "estica", e os cerca de 92 000 m2 encolhem com essa imensidão de veraneantes  que o inunda, eis que nós, residentes, nos vemos de um momento para o outro, espalmados em tudo quanto é sítio.  E eu que gosto de espaço e calmaria, não escondo o meu nervosismo.

Cafés a abarrotar e se por alguma sorte tiver uma mesita vazia, o barulho de quem conversa aos berros é ensurdecedor. Ler o jornal pela manhã ao mesmo tempo que se contempla a praia e se toma um cafézinho gostoso é missão impossível em Agosto. Uma simples ida ao supermercado é uma aventura cheia de desafios. O primeiro é ter onde estacionar. O mais provável será andar às voltas durante cinco  ou 10 minutos e mesmo assim correr o risco de não ter vaga... Depois de ultrapassada esta etapa, lá dentro terá filas intermináveis à nossa espera: filas para o pão, filas para a peixaria, filas para o talho...  E mesmo que com alguma destreza consigamos evitá-las comprando produtos já embalados nas prateleiras, eis que seremos surpreendidos pelos carrinhos de compras infindáveis, estacionados por todo o lado, bloqueando tudo quanto é via, tornando o cruzamento quase impossível. Sem falar é claro, daqueles que em fila dupla ou tripla, aproveitam para parar e falarem em grupo entupindo as passagens enquanto colocam o historial das suas vidas em dia, falando das "vacances", das saudades, e das suas vidas de emigrantes.  Quem sobrevive a esta aventura tem depois de obviamente dirigir-se ao caixa para pagar... Outra vez filas e mais filas, lá escolhemos uma à sorte rezando para que seja célere. E passados quase vinte minutos só para pagar, com uma neurose aguda à flor da pele, saber que em Setembro tudo volta ao normal, conforta-nos...

Circular na estrada nesta época, também não é para amadores. O mais certo é deparar-mo-nos a cada quilómetro percorrido com um automobilista a "desfilar" em passo lento a sua viatura topo de gama, saída da garagem exclusivamente para as férias em Agosto, a travar ainda amiudamente para apreciar as paisagens ou as garinas que passam. Sem falar é claro, daqueles que, procurando algum destaque, "olha para mim que tenho uma "bomba" e trabalho na Suiça", como se isso lhes desse direitos acrescidos sobre os residentes, enervam-se todos ao volante por "acharem" que uma rotundo se faz totalmente pela direita e nos insultam porque ao contrário deles, sabemos o código da estrada. 

Também não menos irritante esta mania de alguns emigrantes viverem ao contrário: se estão na França, carregam-se de símbolos portugueses e ostentam-no de forma quase obsessiva. Se vêm para Portugal querem a todo custo que saibamos que são "franceses", deixando de lado a língua mãe e  carregando nos "erres" com força não vá a gente distrair-se e não perceber que eles são estrangeiras em terras portugueses. 

Não pensem que não gosto dos turistas. Gosto e muito mais dos nossos emigrantes de quem admiro a coragem de fazer vida, às vezes bem dura, lá fora. Apenas gosto de tranquilidade e confusão de gente, só aprecio em zonas controladas que procuro ou não, consoante a minha disposição. No meu dia-a-dia , gosto mesmo é de sossego, que desaparece assim que vem o meu querido mês de Agosto.       

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

OS TIOS

Há um enigma na minha vida que me persegue desde menina: porque me odeiam tanto os meus tios paternos? Porque minha existência os incomoda? Até que cresci e a vida me trouxe a sabedoria para compreender. Meus tios são como a lenda do escorpião que depois de salvo quatro vezes de se afogar, picou as mesmo quatro o seu salvador. Eles não precisam de ter motivos, eles picam por picar. É sua natureza.

Logo muito cedo fui fustigada pelo mesmo mal de que acabou de padecer meu pai e meu tio. Tinha apenas 13 anos e a inocência própria daquela idade. Amava-os a todos e sentia-me feliz porque nunca tivera família até ali e isso enchia-me a alma. Eram aparentemente afáveis e pareciam todos muito amigos uns dos outros. Por isso não foi difícil meu pai, depois de umas curtas férias a Portugal, me convencer a cá ficar definitivamente. De um dia para o outro passei a ter imensos primos e tios onde em grupo nos reunia-mos frequentemente em longos e simpáticos convívios, sempre cheios de risos e brincadeiras. Era uma delícia e sentia-me infinitamente feliz.

Mas não tardou muito a ver eclodir os primeiros episódios de mágoas que me acompanhariam ao longo de décadas. Por ter sido a mais velha de todas as sobrinhas e logo também a primeira a dar passos numa adolescência algo conturbada, fui a estreia  viperina destas almas malvadas. Ser a primeira em tudo, não é fácil de digerir, de facto: a primeira com coragem para divorciar; primeira a obter um curso superior; primeira a construir casa; primeira a adquirir carro; primeira a construir carreira profissional de sucesso. Enfim, a primeira e única com um currículo de fazer inveja a qualquer um... E inveja não falta à minha família paterna. 

Sem coragem para o admitir, foram minando as minhas trajectórias com comentários e boatos, construindo à minha volta uma imagem de mulher fútil, irresponsável, leviana e incompetente. Fútil, porque só as fúteis que querem libertinagem é que se divorciam. Irresponsável porque uma mãe que gosta dos filhos não se divorcia. Leviana porque meninas de boas famílias não tiram fotografias abraçadas aos namorados, não os beijam nem muito menos vão às discotecas com eles. Incompetente porque  levei a empresa do meu pai à falência deixando-o tão pobre que hoje vive só dos rendimentos...   

Compreendo que não é fácil ter na família uma personagem do meu calibre sobretudo se não se passou da mediania, se não saíram do cinzento monótono de uma vida sem destaques, sem glórias, sem sucessos... Estas línguas viperinas não passam de gente apagada sem cor, sem brilho, sem luz, que caminham lentas e arrastadas para uma velhice tendo tido como único destaque, respirar para não morrer. Quando pouso o olhar neles, mesmo à distância, vejo gente sem glamour que perdeu tempo demais com a vida dos outros e tempo de menos a cuidar das suas.   Distraíram-se tanto que não viram que seus filhos já divorciaram repetidamente e mais vem a caminho... Que enquanto me apontavam leviandade andavam promiscuamente envolvidos uns com os outros, trocando de camas aqui e ali enquanto desfilavam casados para o bem da moral e bons costumes... Que abriram falências fraudulentas, fugas colossais aos impostos, e deixaram morrer todos os negócios em que se envolveram...  Para não falar daqueles cujo o único mérito foi fazerem uma casa em cima de um terreno do pai... 

Já lá vai o tempo em que tudo isto me atormentava o sono. Compreendi que mesmo não lhes tendo feito mal algum nem ter proferido o que fosse que os prejudicasse, não poderia fugir nunca ao veneno das suas línguas. Sei hoje que só se fala de quem tem brilho próprio e irradia luz por onde passa. A mesma luz que gostavam de possuir, mas por serem  almas pequenas, não a têm. 





segunda-feira, 21 de julho de 2014

VEGETARIANA? NÃO, OBRIGADO.

Não gosto de radicalismos. Sejam eles sobre o tema que forem. Para mim, tudo na vida tem de ter equilíbrio e bom senso. E definitivamente, esta onda do vegetarianismo obsessivo enerva-me. O fundamentalismo à volta desta crença chegou ao cúmulo de nos impor o sentimento de culpa por respeitarmos a nossa natureza biológica de omnívoros!

Recuemos no tempo. Nos primórdios da evolução humana, os nossos descendentes primitivos comiam plantas e caçavam para a sua sobrevivência. À medida que foram evoluindo, organizaram-se em sociedade e da caça, passaram a fazer a sua própria criação, poupando assim a vida selvagem. A minha avó criava galinhas, patos, porcos e vacas. Vivia do que criava. Não o fazia por ignorância por falta de cultura. Fazia-o por instinto. A nossa constituição biológica é testemunha que a nossa natureza é também comer carne. Só a título de exemplo, se o ser humano fosse vegetariano teria nascido com dentição e estômago de ruminantes. Fazemos parte de uma cadeia alimentar onde todos são imprescindíveis e onde a "morte" para alimentação não é chacina mas sim sobrevivência. 

É certo que o corpo humano consegue viver só de plantas. Mas é errado dizer que vive melhor. O nosso corpo é de tal modo magnífico que consegue adaptar-se a todas as adversidades por muito austeras que sejam. Tirem-lhe a carne, e ele resiste! Tirem-lhe o pão, e ele resiste! Tirem-lhe a massa, e ele resiste! Tirem-lhe os vegetais, e ele resiste! Tirem-lhe a comida por completo, e ele resiste por mais de um mês!! Apenas a uma coisa sucumbe ao fim de 7 dias: falta de água! Por isso, afirmar-se que se vive muito bem só comendo vegetais não deixa de ser uma verdade com duas realidades: sim, o corpo aguenta.  Não, esta não é a dieta adequada ao ser humano!    

Mas o pior é que os fundamentalistas da causa, não se ficam por aqui. Para justificarem a sua adesão, auto-afirmam-se amigos dos animais e logo, deixam passar o sentimento de que só é amigo destes quem come plantas! É o contra-senso total! Então devo depreender que há espécies de seres vivos privilegiados que não devem ser comidos e outros que até o podem ser? Não serão as plantas, elas também seres vivos tão dignos de serem mantidos  como as galinhas os patos ou os porcos? Não terão elas até maior nobreza no papel ecológico e ambiental que desenvolvem no nosso planeta, limpando todos os dias o ar que respiramos, muito mais importante que a galinha que se limita a comer e defecar? E fazer hortas sejam domésticas ou em escala industrial, não será um gesto de matança desmesurada e condenável? Parece que não. Só os mamíferos ou peixes é que parecem ter direito à vida...   

Acontece que todo os ser vivo é imprescindível à vida precisamente porque uns pertencem à cadeia alimentar de outros  e a sobrevivência de ecossistema depende da morte de uns em prol de outros. Nada a fazer. São leis da natureza em que o Homem interfere mas não altera porque se o fizer, condena espécies. Não vejo nenhum radicalista a contestar a natureza carnívora do leão que caça a coitadita da gazela indefesa  e a come. Não deixa de ser um cenário bárbaro. Então porque não os põem a comer ervas ou ração? Porque deixam que ele continue a matar "inocentes"? Não será esta prática condenável e merecedora de intervenção? E nesta perspectiva, serão os animais herbívoros melhores seres do que os carnívoros só porque comem plantas?

Sim é verdade que hoje se assiste a uma massificação da produção e matança animal. Que se lida com eles de forma cruel sem comparação alguma com o que se fazia no tempo da minha avó que cuidava deles todos os dias com carinho em condições mais dignas. Mas é aí que se deve intervir. Criar regras, limites a toda a selvajaria que por aí inunda e que deve ser criminalizada. Fazer educação alimentar ensinando a comer de forma equilibrada sem excessos, seja de carne, seja do que for, obrigando a industria a resfriar e sair do "TGV" de consumos para passar para a "locomotiva"  dos bons velhos tempos. Incutir de novo a criação em casa de hortas e animais que além de serem muito mais saudáveis protegem as espécies.

Não sou assassina de animais indefesos e não tenho pudor em fazer criação em casa. Gosto de comer carne ,sim, e não vejo qualquer problema nisso. Manter-mo-nos fieis à nossa natureza é um direito que devemos viver sem culpas onde o fundamentalismo vegetariano não tem lugar. 

     


sexta-feira, 4 de julho de 2014

O QUE SE DIZ A UMA MÃE QUE PERDE UM FILHO

O que se diz a uma mãe que acaba de perder um filho? O que se diz a alguém a quem a morte arrancou sem prévio aviso metade do seu ser? O que se diz a quem os lábios debitaram toneladas de afecto, cujos  braços confortaram quilómetros de vezes no seu regaço e agora resta-lhe o vazio imenso?  

Nada. Não se diz nada. Porque nada, é a forma melhor de se dizer o que não se pode dizer... Porque as palavras é o que menos se quer ouvir a menos que seja para dizer que tudo não passou de um sonho mau. A menos que seja para dizer "ele partiu mas vem já...", a menos que seja para dizer que tudo não passa de invenções dos paparrazi cor de rosa...   É no silêncio que falamos. Silêncio profundo carregado de dor seguido de um abraço forte onde se chora junto... em silêncio. Porque só nele ouvimos a voz do coração e só ela pode confortar uma mãe de tamanha devassa. 

Eu sei que todos os dias há mães que perdem filhos, mas a Judite não é só mais uma mãe. É alguém que todos os fins de semana entrava na minha casa para me dizer boa noite e dar-me a conhecer as últimas novidades do país e do mundo. Fazia parte da minha vida como tantas outras coisas. E não consigo ler as notícias que saem sobre o assunto sem que as lágrimas me corram copiosamente pelo rosto. Uma angustia profunda tomou conta do meu peito como se de repente sentisse que a qualquer momento poderei ser eu a próxima vítima. Porque ela não escolhe credos, nem religiões, status ou idade. Ela vem sorrateiramente ávida de morte e transforma em noite a nossa vida implacavelmente sem mandato, sem sinais, sem nada... 

Hoje como tantas vezes, meu filho pediu-me para dormir com ele. E ao contrário de tantas outras vezes, acedi sem demoras nem contestações. Marimbei-me para aquilo que é correcto ou errado. Deixei que se enroscasse  em mim e na penumbra do quarto pedia baixinho a quem me ouvisse, que não deixasse meus filhos "partirem" antes de mim... Porque hoje mais do que nos outros dias não quero saber o que isto é. Não quero experimentar esta ausência macabra, não quero ser castrada do meu único e verdadeiro sentido da vida. Não quero que me rasguem a alma arrancando-me o que de melhor soube fazer: ser mãe. 

E porque nada se diz a uma mulher que perde um filho, nada digo à Judite. Ofereceu-lhe o meu humilde silêncio levado por um abraço virtual  que espero, a ela chegue carregado de carinho porque também sou mãe. 

  
  

sexta-feira, 27 de junho de 2014

A CULPA É DAS MULHERES


Estava eu muito sossegada a ler uma revista quando deparo-me com um comentário de Fernanda Montenegro,  uma atriz brasileira por quem tenho profunda admiração pela sua longa carreira no teatro e televisão. No artigo a propósito da longevidade do seu casamento, ela explicava que o segredo estava em não tentar mudar a "natureza" do homem. Que homem tem de ser livre, deixar tudo pelo chão e que quem não quer bagunça que case com mulher! Pronto! Estragou tudo! E se o seu percurso profissional continuou intocável, a pessoa por trás deste sucesso, desiludiu-me. Mas alguém no século XXI acredita que é mesmo assim?

O cerne da questão está mesmo aqui: é por a maioria das mulheres pensarem assim que temos os homens que temos. Se é certo que homem na sua origem foi criado para caçar, proteger a família enquanto a mulher cuidava dos filhos e do lar, a evolução do Mundo trouxe novidades aos quais a nossa espécie se adaptou. É tão comum, hoje, ver mulheres a trabalhar fora e com cargos de chefia, como homens a cuidar dos filhos e tarefas domésticas. A libertação da mulher e a proclamação de igualdade de géneros virou do avesso  a rotina familiar aniquilando de vez o conceito de papeis pré-definidos. E sinceramente, ainda bem! Mas quem é que quer viver preso à ideia de que por nascer mulher ou homem já vem programado para ser ou fazer determinadas coisas?

Não é por ter nascido homem que  há desculpas para não participar conjuntamente com sua mulher nas tarefas de casa. Quando se decide viver com alguém, está-se a formar uma equipa, a "convocar" dois jogadores para participar no campeonato da vida. E se queremos marcar golos, sermos os melhores dos melhores, não podemos deixar o nosso companheiro sozinho. Temos de jogar juntos! Já lá vai o tempo em que a mulher ficava em casa por opção. E se bem que, ser dona de casa é um trabalho árduo sem remuneração a que muitas dizem sim sem problemas, outras, com todo o direito para isso, querem abraçar desafios maiores.

A entreajuda é fundamental numa relação. Demonstra amor porque quem ama quer ver o outro feliz. Demonstra respeito porque quem ajuda sabe que o outro não é escravo de ninguém. Em suma, a longevidade dos casamentos não se resume em deixar ser, mas sim, em completar o outro sem o anular, numa caminhada justa e igual na divisão dos deveres. Quando um sente que dá mais do que o outro, o fim está à vista...

Infelizmente as mulheres, que mais se lamentam desta triste sina são as responsáveis por terem os homens que têm. Quando são mães, é frequente vê-las a "pouparem" os meninos das tarefas domésticas, das obrigações de partilha de deveres em casa quer sejam únicos ou tenham irmãs. Educam o rapaz como se fosse um príncipe onde as mulheres lhe devem serventia. É comum vê-los já grandes em casa da mãe com direito a roupa lavada, passada e "limpeza" de quartos. Não movem uma palha. Não percebem que serão eles os futuros maridos de amanhã e que, tal como elas, haverá um dia uma nora infeliz e revoltada.

Ninguém nasce programado. É na educação que  construímos aquilo que somos. E é às mulheres que compete mudar. Mudar a forma de educar os meninos para transformá-los nos homens que desejaríamos ter. Os homens que receberam uma educação completa, tornam-se mais atraentes aos olhos de uma mulher. Porque enquanto os músculos trabalhados agarram por momentos, o espírito de entreajuda, de trabalho e sacrifício agarram por uma vida...  

terça-feira, 17 de junho de 2014

O DESTINO TOCA SEMPRE DUAS VEZES

Há uma linha que separa aquilo que controlamos, daquilo que, por muito que fujamos, acaba por nos alcançar. Falo de destino, sim. . Daquela força quase sobrenatural que nos leva a escolher o caminho  da direita ou da esquerda; que nos faz tomar a decisão errada em vez da certa;  que nos faz aproximar de pessoas malignas e afastar das que nos querem bem; que nos conduz à tragédia ou ao sucesso como se comandasse a nossa vida.

Falo de destino, sim. E não sou eu que quero acreditar nele. Foi a vida que me ensinou que ele, faz parte dela...  Quando me dizem que somos o resultado das decisões que tomamos, pergunto-me: mas eu não escolhi a infelicidade, mas tive-a; eu não escolhi a adversidade, mas encontrei-a; eu não escolhi a tragédia, mas ela procurou-me! Se eu não tomei estas decisões, porque vieram ao meu encontro? Então repassei toda a minha vida até às memórias mais longínquas para ver onde estavam as minhas falhas, aquelas que supostamente eram responsáveis pela vida que tive. E o que vejo? Nada. Vejo apenas alguém que conheceu gente que não devia; que escutou outros que deveria ter ignorado; que cruzou com falsos; tropeçou em malévolos; acreditou em mentirosos. 

Quando olho para trás fico incrédula com a forma como coisas se repetem. A semelhança do que já vivi e de que tanto fugi. Dirão que foi a repetição de um erro. Eu digo não!, foi o mesmo embuste que o  destino me preparou mas embalado de forma diferente. Atenta a tudo que não queria, acabei por obter tudo o que queria de forma avassaladora. Achei que era bom demais mas deixei a modéstia de parte a aceitei esta dávida que pensava mais do que merecida. Abri-me, entreguei-me,  para descobrir mais tarde, muito mais tarde, que tudo não passava de uma brincadeira malvada dum destino que teima em ser cruel.

A vida que temos é o resultado das pessoas que conhecemos colocadas por um destino que não controlamos mas que nos influencia. Ninguém sai pela manhã decidido a morrer, mas morre; decidido a adoecer, mas adoece; decidido a perder um emprego, mas perde-o. Para uns ele será implacável, para outros abençoado. Por muita sabedoria e cuidados será também  o destino que ditará ao longo da vida se, todo o empenho que estamos a colocar na nossa vida nos vai levar onde queremos ou para onde ele nos conduz...  Acredito que tal como a água, o contornamos, o moldamos, o influenciamos com as nossas decisões. Mas ele estará sempre lá e de forma oculta acabará sempre por nos traçar um caminho.  


sexta-feira, 6 de junho de 2014

MEMÓRIAS DE UM COLÉGIO





Tinha 12 anos quando cheguei. Estávamos em 1979 e Portugal à essa época parecia um país subdesenvolvido para quem tinha crescido na América do Norte. Tal mudança poderia ter sido um choque e comprometer um recomeço de vida em terra estranha. Mas o acolhimento caloroso daqueles que conheci neste pedaço de terra solarengo à beira mar  suprimiu  todas as lacunas que aqui encontrei. 

Era o meu primeiro dia de escola e não fazia ideia da escola para onde ia. Sabia que era um colégio, mais nada! E sabia também que era o melhor sítio para se ter um filho a estudar. Vi meus pais ao chegar preocupados em saber onde deixar a filha nesta terra onde o ensino público tinha tão má reputação.  Recordo-me que estava cheia de medo porque donde eu vinha a discriminação era-me bem familiar e se lá me punham de parte por ser portuguesa, cá,  imaginava que fariam o mesmo por ser... canadiana! Mas logo percebi que a alma desta gente, a nossa gente, era tão diferente. Assim que fui apresentada um turbilhaõzinho de miúdos rodearam-me curiosos ávidos de saberem tudo sobre mim. Eu dominava mal, muito mal, a língua portuguesa. Mas nem isso colocou barreiras. Era vê-los a esforçarem-se para serem entendidos mas sobretudo para me ajudarem a comunicar. Assim como muitos momentos divertidos com as expressões que "ajustava" numa tradução directa do francês para o português e que provocavam muitos risos. Há duas palavras que jamais esqueço e que aprendi com eles: o "concordas?" e o "percebes?". O primeiro porque a única palavra similar que conhecia era o avião "concorde". A segunda que só depois de arranjarem o sinónimo "entendes?" fez nascer luz dentro da minha cabeça.   

O colégio era um edifício velho, muito velho onde nalgumas partes havia pedaços de tecto que caiam. A minha sala era no topo da escadaria, no último andar. Pequena, com mesas de madeira que denunciavam a passagem de muitos anos, todas rabiscadas, um quadro de lousa pequeno e uma janela pouco maior que um postigo, contrastavam com a recordação que tinha das salas por onde tinha andado, amplas, cheias de luz, quadros imensos e mesas ergonómicas. Cá em baixo na entrada, à esquerda, era a secretaria. O hall era secular e no topo, a escadaria que nos levava ao primeiro andar. Ali, depois de atravessar um corredor, ao fundo, o refeitório, onde se destacava uma mesa rectangular comprida destinada aos professores, rodeada por outras redondas onde, por grupos de 4, nos juntávamos para almoçar. Recordo dois pratos que nunca comera e que adorava: massa esparguete com frango e rancho. No rés de chão, o ginásio. Pouco maior que uma grande  sala de aula americana,  muito pobre em equipamento desportivo, era lá que em dias de chuva nos reuniamos para a aula de educação física. Quando o tempo o permitia, saltávamos para o exterior onde se encontrava o campo de futebol que só assim o denominávamos por ter duas balizas. Do outro lado oposto, numa pequena área coberta, ainda no exterior, enquanto os rapazes exibiam seus dotes de futuros futebolistas no campo, as meninas deliciavam-se a jogar  handball.  As aulas de trabalhos manuais eram num anexo no exterior. Frio, húmido, aí dávamos vida às nossas criações onde a memória me leva até aos "macramés"  e onde aproveitávamos todos os minutos da aula com entusiasmo para ver nascer a obra.

Vivíamos com intensidade cada dia ali. Não sei se por sermos poucos e a mesma turma nos acompanhar todos os anos até concluir o último grau. Se por não podermos sair quando havia um "furo" impedidos de fugir à sucapa pelo Sr. Amândio, sempre atento às nossas investidas, e sermos obrigados a criar actividades para nos entreter. Daí os cânticos em qualquer canto do colégio, os jogos das prendinhas onde experimentamos os primeiros beijos, as aulas práticas de maquilhagem na casa de banho onde perdíamos horas no espelho a  experimentar visuais novos. Ou simplesmente a conviver na porta de entrada, ali alinhados nos degraus,  para desespero dos padres que não nos queriam ali...  Ah! E os padres, tão únicos e peculiares: o Fonseca que dava aulas de matemática e físico-química introduzindo uma anedota aqui e acolá que nos prendia a atenção só para não correremos o risco de perder as gargalhadas garantidas; o Freire que contava a História com paixão em vez de a ensinar; e até o Miguel que todos temiam por ter mão pesada nos castigos!

Havia naquele lugar algo de mágico, único que sem sabermos ficaria registado dentro de nós para toda a vida. Ficamos eternamente ligados como um cordão umbilical que une mãe e filho, presos por uma  terna lembrança  de um colégio que não se apaga da memória. Um grupo de gente que faz parte de nós... Uma segunda família.

Dedico estes post a todos os meus colegas do Colégio do Minho de 1979  

       

sexta-feira, 16 de maio de 2014

VIVI UM CONTO DE FADAS


Estava deprimida. E por muito que ela insistisse, minha amiga não conseguia demover-me da minha intenção de não ir ao festival de Paredes de Coura. Seria até uma experiência única pois nunca soubera o que isso era nem tão pouco tinha experimentado algo parecido apesar de já contar com 35 anos de vida. Mas estava decidida a não ir. Os problemas que me consumiam apenas me motivavam a enterrar-me na minha cama a ver televisão e comer até não poder mais! Estava assim. Sem vontade para nada!  Mas ela tanto, tanto insistiu que acabei por anuir só para lhe fazer a vontade e calá-la de uma vez. De certo modo, entendia o seu desespero em querer animar-me a todo o custo. Era amiga e as amigas fazem tudo para nos verem felizes.

Quando entramos no café e nos juntamos ao grupo de seguranças do festival ao qual pertencia o namorado da minha amiga, vi-o por entre os outros. Calado, com os óculos posicionados ao contrário, por trás da nuca,  participava na conversa pontualmente mas com muito humor sem deixar o ar sério que carregava. Percebia-se a empatia que tinham por ele e eu, discretamente observava-o tentando descobrir o que nele não era ainda visível. Um jantar nessa mesma noite alterou para sempre o percurso de uma vida...

Fulminada por uma atracção sem igual, deixei-me levar pela magia desta experiência ao lado de alguém que parecia ter surgido de outro planeta. Consciente que os contos de fada não existiam, embriaguei-me por este príncipe sem cavalo branco que me fazia levantar os pés do chão sempre que me beijava. Era surreal de tão perfeito que me parecia. Um cavalheiro à moda antiga que abre a porta à sua donzela; que puxa a cadeira para ela se sentar; que interrompe os outros para a deixar falar; que lhe escreve poemas em qualquer lugar; que lhe prepara o melhor repasto que se possa imaginar. Um príncipe de sorriso largo e gargalhada sonora, cheio de humor e alegria de viver. Um louco divertido que tornava cada dia mais hilariante que o outro. Um companheiro sensível incapaz de suportar uma lágrima minha. Um sonhador que idealizava concretizar todos os meus desejos só para me ver feliz. Um sonho de homem!

Mas a vida, ah! essa malvada, tinha de se meter neste conto tão belo e afogá-lo em problemas e dificuldades. Acrescentar doenças e atrocidades. Tinha de vir com suas rotinas e desencontros e transformá-lo em conto de falhas...

Aprendi que os contos de fadas começam sempre bem e aquela parte do "...e viveram felizes para sempre..." é porque somente nos é contada a primeira parte da história e nunca o fim. Todos vivemos contos de encantar quando conhecemos alguém. Todos amamos intensamente aquele que escolhemos para a vida. O resto já não depende só dos protagonistas. Depende da vida.

Será o amor e apenas este que determinará se continuaremos a viver aquela história ou não. Se é de facto uma história com falhas num conto de... fadas que vale a pena ter. Porque um grande amor não se vive no glamour e purpurinas. Vive-se no pó do deserto com a convicção que é o melhor e único lugar no mundo onde queremos estar.






HUMILHAÇÃO



Eram já habituais os "feriados" às aulas. Ou porque os professores faltavam ou porque faltávamos nós. Sabíamos quantas faltas colectivas podíamos dar e então, nós que éramos uma turma de apenas 5 alunos inscritos a todas as disciplinas, não precisávamos de muito esforço para termos "direito" a uma folga forçada.
Naquela noite foi um dia desses. O Zé chegou e disse: " Malta! Não me apetecia mesmo nada ter aula de Psicologia hoje... Vamos dar falta?" Nem era preciso esperar pela resposta porque assim que as palavras mágicas saíram, começámos a correr pela escadaria abaixo, antes que o professor se cruzasse connosco.
Havia ali pertinho um café, já não me lembro do nome, onde costumávamos ir para descontrair. Era pitoresco, não muito grande mas acolhedor. Ali nos perdíamos entre anedotas e histórias que contávamos uns dos outros ou simplesmente divertíamo-nos a descrever este ou aquele professor imitando-lhe os tiques e as condutas. Eram sempre momentos hilariantes e bem passados que não perdíamos sempre que a oportunidade surgia.
Apesar dos meus 18 aninhos, eu já era uma mulher casada. Mas isso, claro, não era impedimento para conviver com os meus colegas de turma. Claro que não! Pelo menos era o que eu pensava... até àquele dia! Estávamos tão compenetrados nas nossas conversas que nem o vimos entrar. Mas a expressão do meu colega à minha frente, que se tornara repentinamente séria, fez adivinhar que algo de errado se passava. Quando ele finalmente diz baixinho: "Vem aí o teu marido", eu que estava de costas para a porta, não vira a expressão que carregava no rosto e por isso, não imaginei sequer o que acabou por acontecer. Assim que me alcançou, agarrou-me com força no braço, obrigando-me a levantar, e num gesto brusco, puxou-me com violência para a sua frente ao mesmo tempo que dizia:"Vamos embora, já!" Todos os olhares voltaram-se para nós enquanto desfilávamos até à saída. E eu, de cabeça baixa, com o braço a doer, saí sem olhar mais para trás...
Fomos em silêncio até ao carro. Um silêncio agonizante que me gelava até à alma. E pelo caminho perguntava-me o que de errado teria feito na minha vida para ter um homem assim. Que homem era aquele para me fazer passar tamanha humilhação? Entrámos no carro. Com o olhar pousado na estrada, o silêncio é subitamente quebrado pela sua voz estridente:" Mulher minha não vai prós cafés! E ficas já avisada! Se te apanho noutra, isto não acaba assim!". Não respondi. Não havia nada para dizer. De que serve argumentar com homens paleolíticos, que não respeitam a individualidade de cada um? Uma neblina húmida apoderou-se dos meus olhos e enquanto as lágrimas tombavam pela face, prometi nesse momento a mim mesma que um dia deixaria de ser humilhada.


terça-feira, 6 de maio de 2014

O MEU NOME É GISELLE SILVA


Podia ter sido só mais uma notícia sensacionalista como tantas outras naquela estação televisiva. Mas o tema prendeu minha atenção. Aquele tema tão familiar fez-me estremecer de curiosidade. Queria saber que destino iria tomar aquela menina. Aquela  que o tribunal determinou que iria viver junto da mãe. A jornalista alertava para as imagens chocantes. E eu congelo ali de olhos fixos a tentar adivinhar o que se seguia. 

Giselle é filha de um português e mãe irlandesa. Apanhada pelo turbilhão das desavenças dos pais pela luta da custódia, a menina tem um desejo que manifesta categoricamente junto da juíza: ficar com o pai. Durante todo o processo é-lhe feita uma avaliação psicológica que determina uma maturidade acima da média para a idade que conta já com 9 aninhos. Deixa vídeos a manifestar o seu desejo. Desenhos, escritos... Tudo aquilo a que ela se pude agarrar para convencer os adultos que a julgam de que não tinha dúvidas. Mas Giselle não tem voz. Não tem vontades. Não tem sequer direitos neste país de cegos e imbecis que mais uma vez avaliam de forma brejeira a vida de um ser. E debaixo de um mandato judicial pai e filha são obrigados a despedirem-se, quiçá para sempre, porque esta parte só a mãe o ditará. É então que no aeroporto, à porta do embarque para a Irlanda, que se ouvem os choros da menina agarrada ao pai em desespero, pedindo-lhe que não a deixe ir. Um nó gigantesco aperta-me a garganta. Não aguento. As lágrimas apoderam-se de mim e lavam-me o rosto enquanto oiço os polícias a avisarem que se ela não fosse teria de ser levada à força!

Há crueldade maior que esta? Que humanidade tem esta juíza ao decretar tal sentença? Que emoções terá ao ver estas imagens como eu? São perguntas que eu gostava de ter oportunidade de lhe fazer... Porque em tempos, eu tive uma menina que viveu uma história idêntica...

A minha filha era demasiado pequena quando eu a perdi para o pai. E demasiado pequena também para dizer com quem queria ficar. Por isso, quando recebi a sentença, apesar de ter recorrido, conformei-me com a decisão. Até porque não tinha qualquer indicação de que ela não era feliz. E quando assim é, cabe-nos a nós que amamos os nossos filhos, deixá-los onde se sentem bem. Mas aos 10 anos ela revela-me a sua infelicidade, ocultada durante imenso tempo. Não hesitei e com armas e bagagens ambas iniciamos uma longa luta para retirá-la dali. Quis o destino que o caso fosse parar às mãos de uma juíza que não descurou uma única prova apensa ao processo. Cartas, desenhos, testes de avaliação psicológica, testemunhos da criança!  Mas sobretudo o mais importante: a vontade da minha filha! 

A Giselle e outras crianças como ela (lembram-se daquela menina de Braga que teve de voltar para mãe biológica, à força na Rússia?)  não tiveram a mesma sorte de verem respeitada um direito tão simples como o direito de escolha. E por isso ficarão com marcas para o resto da vida. Dizem eles, os juízes, que tudo isto é pelo superior interesse da criança... A sério? 

Se estas decisões são para as defender, não quero sequer imaginar o que fariam para as castigar...    

AMBIÇÃO

Aquela frase martelou-me na cabeça como sinos que rebatem efusivamente em dias de festa,: "Tu não tens ambição!" dizia ele. Sabem aquele momento em que temos  vontade de explodir em explicações mas acabamos por nos remeter ao silêncio? Pois foi exactamente isso que fiz: fiquei muda. O desalento tomou conta de mim pela ignorância, ou talvez não, exibida naquelas palavras. Seria ele assim tão distraído em relação ao meu percurso de vida? 

A verdade é que a maioria dos mortais associa a palavra "ambição" somente a poder e dinheiro. E se de facto,  a definição da palavra fosse apenas essa, sem dúvida que não me encaixaria dentro dela. NUNCA! Mas no dicionário lá vem aquela parte em que diz: grande desejo de realizar ou atingir algo - aspiração, e aí eu digo: Bingo! Eu sou a "ambição" personificada! 

Quem conhece o meu percurso de vida ao pormenor sabe a quantidade de metas que procurei atingir e atingi-las a todas com distinção. Não me recordo de nada que tenha ficado pelo caminho por fazer e já tenho lista para os dias vindouros. São desejos que nunca param de brotar e que me dão a adrenalina que preciso para me sentir completa e realizada. Recordo a minha primeira ambição aos 17 anos de ter a minha independência, depois o curso superior, depois o meu primeiro carro, depois a minha primeira casa... aqueles primeiros desejos de quem está no início de uma longa caminhada. Mas hoje estou diferente. A idade madura trouxe-me outro desejo menos palpável mas muito mais ambicioso: ser feliz. Já não me basta ter isto ou aquilo. Quero ser feliz! Aprendi com a vida que esta é a maior e mais temível das ambições porque exige tanto de nós e tão pouco do que nos rodeia. Atrevo-me a dizer que é muito mais fácil ganhar dinheiro, muito dinheiro, do que ser... feliz. 

E lá vou eu em mais uma etapa em que no topo da lista procuro a felicidade do meu "eu", em busca desse encontro de paz e de luz que sei que há em mim.  E ao mesmo tempo que mergulho ao mais profundo do meu ser elevando-o ao êxtase, quero deliciar-me num leito de prosa e letras e fazer delas a minha vida. 

Ambiciosa, eu? Claramente que sim!
 

sexta-feira, 4 de abril de 2014

DIÁRIO DE UMA MEMÓRIA PERDIDA - REORGANIZAR A VIDA





Meus pais foram o que de mais precioso a vida me deu. E muito cedo tomei consciência que um dia chegaria a minha vez de olhar por eles e retribuir toda a dedicação e entrega por mim. É certo que nunca pensei que o destino me chamaria tão cedo. Mas a vida é assim mesmo: não tem hora nem data marcada para alterar o percurso de cada um de nós...

Curiosamente a vida dá-nos sinais e ajusta-se sem que muitas vezes nos apercebamos e cabe-nos a nós decifrar o que ela nos coloca. Andava eu desconcertada com a perda de uma grande cliente quando na verdade o destino ajustava a minha vida de forma a dar espaço a outras coisas que estavam para vir: cuidar do meu pai.

E assim de forma tão natural vejo-me a reorganizar tudo em função desta nova realidade. A falta de  tempo de que me queixava para satisfazer as minhas necessidades de "bom vivant" aparece agora convertido em tempo que se faz sobrar à força para nele caber todo o tempo preciso para apoiar os pais. Habituei-me a ver através dos outros que esta etapa seria penosa.  Mas eu não sinto isso. De cada vez que cuido do meu pai tenho a certeza que é ali que quero estar.

Reorganizar a vida, ao contrário do que seria de esperar, só me permitiu redireccioná-la e sem querer acabei por melhorá-la. Abri espaço para o meu pai e acabou por sobrar para mim. Novos projectos , desta vez literários, começaram a ganhar espaço nesta minha vida onde não havia espaço senão para o trabalho. E aprendi que quando realmente assim o queremos arranjamos tempo para tudo e que aquilo que hoje sentimos como perdas, amanhã transformam-se em ganhos. Na vida nada é a perder. Tudo se transforma. E o mau é apenas a passagem de um ciclo que termina para outro que se inicia...



    




sexta-feira, 28 de março de 2014

APRENDER A SER FELIZ

Não há fórmulas para encontrar a felicidade nem caminhos que nos levam até lá. Ser feliz começa em nós e para pudermos vir a ser felizes é preciso primeiro aprendermos a nos amar. Sem amor próprio é impossível sentirmo-nos bem em qualquer parte tenhamos o que tivermos. A felicidade constrói-se e é necessário antes de tudo apaixonarmo-nos profundamente connosco estabelecendo uma relação embriagada pelo nosso "eu". Esse é o primeiro passo.  

Os média de hoje são culpados dos sentimentos de frustração que nos sufocam. Erroneamente dão ideia que ser feliz é ser-se Ronaldos ou Irinas. Que o dinheiro milionário é tudo e belezas perfeitas, também. É certo que viver sem dificuldades financeiras é um mal necessário e dele depende o nosso bem estar. Mas só na medida certa para suprir necessidades primárias. Se assim não fosse, não teríamos gente pobre feliz e gente rica infeliz. A realidade é que um bem só nos satisfaz por momentos até vir outro modelo mais sofisticado e destronar o primeiro. É um sentimento que não fica. Não perdura. Desvanece. 

Assim é, também,  com a beleza a que nos amarram todos os dias como se fosse imprescindível à vida. Estabelece-se um protótipo sem o qual, as excluídas,   mirram fechadas em casa, chorosas e infelizes convictas de que não há lugar para elas. Como se a felicidade dependesse de um palmo de cara ou rabo. O certo é que se fosse também esse o caminho, nenhuma beldade seria infeliz nem andaria desacompanhada...

Para sermos felizes, além de nos amarmos acima de tudo, temos de aprender a sonhar com o possível para conquistar o impossível. Dizia o sábio do meu pai que " Ninguém é feliz se sonhar ter a Torre Eiffel" e é bem verdade. As ambições desmedidas só trazem frustração. Pequenos passos fazem-nos chegar longe. O Bill Gates milionário é apenas a consequência de um Bill Gates trabalhador e empenhado numa pequena garagem que apenas queria fazer o que mais o realizava. Por isso, fazer o que amamos é o segundo passo, sem preocuparmo-nos com o resultado. 

Aprender a valorizar o que realmente interessa é outro passo importante. A vida, a família a saúde são bens muitos preciosos  donde devemos retirar todas as nossas energias positivas. Porque a felicidade não nasce na coisas palpáveis. São os afectos que nos unem ao mundo que nos rodeia, que transmitem uma fonte de sentimentos de que só nos apercebemos o quanto são vitais, assim que os perdemos. Não é por acaso que alguns indivíduos, assim que ficam sozinhos, morrem pouco tempo depois...

Finalmente, há que aprender a ser-se positivo para alcançar o bem estar que nos leva à felicidade. Aprender a ver os dois lados da vida retirando sempre o melhor do pior. Não permitir que o negativismo  tome conta do nosso dia a dia envenenando-o. 

Ser feliz é uma arte que nalguns é inata, noutros terá de ser adquirida. Seja como for, o importante é entendermos que ser feliz é um estado de alma e começa com uma grande paixão... por si.   



  

segunda-feira, 10 de março de 2014

PAIS MODERNOS

É comum hoje em dia os pais serem confrontados com este tipo de diálogos:
- Mãe quero um portátil!
- Ó filha, mas para quê se tu já tens um computador no quarto!
- Mas um portátil é mais fixe!
- Claro que sim, mas tu não tens idade para ter um, nem te faz falta e é caro!
- Pois mas as minhas colegas lá da escola têm... Algumas também têm tablet e eu não...

Quantas vezes depois não ficamos com a sensação de que damos pouco aos nossos filhos e até surge um sentimento de culpa por não podermos pô-los ao nível dos restantes colegas de escola?

Do tempo dos nossos pais para os dias de hoje, houve uma evolução gigantesca no nível de vida das pessoas o que evoluiu num consumismo desenfreado. A tecnologia por exemplo, evoluiu tanto que aparelhos como o telemóvel, acessíveis apenas aos mais abastados financeiramente, passaram a fazer parte do dia a dia de quase toda a população. Não é por isso de admirar que se tenha banalizado a aquisição de bens não essenciais que eram de uso exclusivo de adultos e passaram agora para mãos dos mais novos. Os pais modernos não querem que os filhos fiquem privados do  quer que seja,  entendem que a qualquer necessidade material, devem responder com um "sim" para que não experimentem a frustração que sentiram em crianças quando queriam um brinquedo e não lho davam. Por isso, quererão que os filhos tenham mais e melhor que os colegas porque assim sentem que lhes valorizarão o ego tornando-os poderosos junto dos colegas.

Quando eliminamos frustrações, retiramos todos e quaisquer obstáculos no caminho dos nossos filhos e deste modo,  estamos a contribuir para que no futuro não sejam capazes projectar uma vida sozinhos. Serão eternamente dependentes de terceiros para resolverem todas e quaisquer questões que surjam no seu caminho. E com alguma sorte, só conseguirão sair do conforto da casa dos pais aos 40!

Não ceder a tudo que os nossos filhotes nos pedem é um acto de amor. Estamos a construir pessoas que saberão o valor das coisas e o que custa adquirí-las. Criarão objectivos para obterem o que querem, poupando a mesada ou inscrevendo-se num part-time nas férias de verão.  Serão activos e com iniciativa. Saberão que para terem o tão ambicionado IPAD terão de lutar por ele.  E isso ensina-se logo de pequenino...

Preocupa-me o que estes pais modernos andam a fazer, não tanto por mim mas por uma geração que vão criar. Pessoas que frustrarão à primeira dificuldade porque tiveram tudo sem esforço quando debaixo da alçada dos pais; pessoas que mais facilmente roubarão para terem o que querem do que trabalhando e sacrificando-se por elas; pessoas eternamente insatisfeitas porque dependem das roupas de marca e tecnologias de ponta para serem felizes; pessoas vazias de valores completamente adictas ao consumo desenfreado como único objecto de vida.

Aos pais cabe dar aos filhos aquilo que não se vende nem se compra em lado algum por muito dinheiro que se tenha: educação! É o bem mais precioso que lhes deixamos de herança e que infelizmente já escasseia por entre os jovens. Ensinar-lhes a sobreviver nesta selva da vida e dar-lhes as "ferramentas" necessárias para que possam lutar,  evitará transformá-los em  eternos solteirões a viverem com os pais, incapazes de enfrentar o Mundo...

Dar educação não custa senão amor, dedicação e muita determinação. Daí não é preciso ser-se rico para dar o melhor aos filhos. Mas é preciso ser-se uma rica pessoa para sermos bons pais.

  
      


quarta-feira, 5 de março de 2014

DIÁRIO DE UMA MEMÓRIA PERDIDA - A CARTA DO MEU AVÔ

É impossível contar a vida do meu pai sem falar neste episódio. Esta carta, recebida no ano de 2006 alterou por completo o modo como passou a encarar a família e ele, já doente mas consciente ainda do que se passava, nunca mais foi o mesmo. A amargura que passou a carregar levou-o a enfrentar o tirano do meu avô como nunca o tinha feito até então! A carta começava assim:

"Ao amaldiçoado M.........

Grande amigo escrevo-te esta para te agradecer o teu bom procedimento, que não quero morrer sem o fazer. Tu tinhas-me dito que o animal do teu irmão, que se fosse a ter nota de bom comportamento era ele o melhor e mais bem comportado. Pois eu quero que tu fiques a saber que és tu o campeão, o maior cobarde que eu conheci na minha vida. Tu és o maior cobarde do Mundo, tu não és um homem és um bruto que não vale nada e teu irmão esse animal. Deus castigou-vos que sois vós o desprezo de toda a família. Cobardes! Querias vingar-te das tuas irmãs  por elas serem mais ricas! Ganharam-no elas e não eu que lho dei. Já pensaste que Deus castiga. Tinhas desprezo de ser cunhado do "Badolas" e ele hoje é melhor que tu e mais rico. Tem 3 moradas de casas e tu tens uma. Lá está Deus a castigar os maus. Deixaste a tua santa mãe morta e foste trabalhar para a grande fábrica. Valeu-te a pena. Trouxeste de lá as cuecas borradas e a D. Rosa a fralda suja. Cobardes que deixaste a vossa santa mãe e nem viestes rezar à noite com o padre. Vós estais no inferno mas não vai ser só. Esperai para o resto. Mas quero que vós todos vão levar no cu. Nunca precisei de vós nem preciso. Querias ser o mais rico e és a vergonha da minha família. Vós não tendes nada por dentro. Ide ao confesso e dizei a verdade e depois fazei o que o padre vos mandar que vós e a vossa família bruxedo. Que as igrejas para vós não tem valor e vós sois como os cães. Disseste-me que era preciso perdoar. Impostor! Quereis que vos perdoe vós cobardes que eu tinha nojo de vós, trabalhaste na França e no Canadá e na fábrica. Era pra estares rico mas foi tudo por água abaixo no resto ainda vais ver. Põe a cabeça dura."     

O meu avô reagira assim depois de meu pai decidir enfrentar a tirania dele. Pela primeira vez na sua vida decidira que nunca mais se deixaria rebaixar ou desautorizar por ele. E ele, à boa maneira de um ditador, contrariado, exprimia a sua raiva assim.

Obviamente que meu pai tinha consciência que ele estava a ser manipulado. As filhas, de quem meu avô dependia e por quem tinha preferência nos cuidados primários à esposa, maniatavam-no ao ponto de lhe exigir esta lealdade perante o facto de, a dado momento, ter decidido retirar-se da vida deles.

A carta apesar de tenebrosa, é reveladora. É um documento precioso que confirma tudo o que tenho vindo a contar e que os "magníficos" da família renegam. Carregada de malvadez e hipocrisia, ele vai relatando tudo aquilo em que passou a acreditar a partir de boatos infundados e que tanto quis que fossem reais.  Eu sabia que ele era o "divulgador" da tão badalada notícia de que meu pai teria ficado falido. E ao som desta balada, dançaram todos aqueles que tanto desejaram vê-lo perdido em desgraça sem dinheiro, sem prestigio de outrora, sem nada. Nunca nenhum deles se dignou vir perguntar ao próprio pela veracidade do boato. Nunca nenhum se preocupou oferecendo ajuda. Nada. O que importava, isso sim, era dar continuidade a esta nefasta mentira, tornando-a viral no seio da família. Porquê? Porque fazia subir o ego a todos eles que se sentiram pequeninos durante anos em que ele estava no apogeu.

Mas meu pai, que sabia que nunca falira nem muito menos caíra em desgraça,  respondeu com o seu silêncio à idiotice daqueles irmãos e de seu pai. Poderia ter debatido, com factos, por por ponto cada linha desta carta. Poderia ter dito ao pai que as "riquezas" das irmãs  se resumiam a 1 terreno dado por ele onde construíram casa e uma reforma que com alguma sorte será inferior ao salário mínimo; que o cunhado não tem 3 moradas de casa mas sim duas mas que uma delas fora construída em cima de um armazém que lhe pertencia; que não fora ao velório da mãe mas não faltara ao enterro da mesma, ao contrário dele; que não faliu, que vendeu porque quis por largos milhões que lhe permitiu viver sem reforma o resto da vida e que do Canadá e França juntamente com a de cá, passou a ter 1 reforma milionária graças aos descontos que eu os "obriguei" a fazer.

Meu pai poderia ter contestado. Mas calou-se. Porque os sábios não desperdiçam energias com idiotas. E por muito que ele tentasse explicar fosse o que fosse, a vontade de acreditar no falhanço dele era muito maior do que verem a verdade.

Sim, meu pai afastou-se da família. A dado momento virou costas e foi... E há quem não lhe perdoe por o ter feito. Mas isso é outra história...

"MÃE! OLHA!!"

"Mãe! Olha!!" Foi assim que no domingo pela manhã meu filho mais novo, radiante como se tivesse conquistado o universo, me mostrava a sua proeza: acabara de aprender a andar de bicicleta! Enquanto o observava ternamente, orgulhosa de tamanho feito, uma nostalgia invadia-me a alma. Não tinha memórias da minha primogénita a andar de bicicleta quanto mais a aprender. Sem querer voltei àqueles terríveis anos onde a dado momento tive de escolher entre permanecer na clausura de um homem castrador que me violentava psicologicamente, ou fugir correndo o risco de perdê-la...  Foi das decisões mais agonizantes que tive de tomar com apenas 22 anos. E pergunto-me onde fui buscar tanta coragem.

Os ganhos foram imensos mas as perdas também. Renasci das cinzas e voltei a sentir-me viva. Mas pelo meio perdi o que de mais precioso eu tinha: minha filha. É certo que nunca imaginara que a fosse perder. Naquele tempo não se falava de casos em que a mãe perdia os filhos para os ex-maridos, mas até nisso minha história foi tão diferente.

Perdi a meninice da minha filha enquanto lutava pela minha própria existência. Eu sei, eu sei, que há tantos outros motivos que nos levam a falhar os primeiros passos, as primeiras falas, as primeiras letras. Mas não sei como evitar este sentimento de vazio no campo das memórias. É como se várias peças de um puzzle me faltasse nesta tela da vida.  E sinto dor, sinto tristeza por não puder jamais completar o que falta. 

Os momentos com nossos filhos são preciosidades raras incalculáveis de que só nos damos conta, verdadeiramente quando as perdemos.  

  




sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

A VIOLÊNCIA DAS PALAVRAS

Quando se ouve falar em violência doméstica associa-se logo às agressões físicas, àquelas que deixam marcas profundas no corpo visíveis a qualquer um. Mas há outra forma de violentar tão mortífera como a primeira: a violência psicológica. Nesta o agressor não precisa de se munir de facas, espingardas ou outros objectos contundentes. Precisa apenas de abrir a boca e usar a força das palavras crueis e vis que rasgam até à alma. E por não ser entendida, na maior partes da vezes, esta forma bárbara de relacionamento é confundida com mau feitio. É desculpada pela vítima que pensa apenas tratar-se de um carácter "forte" ou difícil como tão banalmente é apelidado. Mas não é. A violência psicológica é praticada por gente com patologias e tem de ser denunciada.

O agressor psicológico é na sua natureza, um indivíduo que por norma não valoriza a mulher nem a respeita. Olha-a como ser inferior, seu subalterno que lhe deve toda a obediência sem pestanejar. Para reforçar este estatuto, humilha-a e despreza-a a cada minuto elevando o seu ego até à altura do chão onde assim o pode pisar sempre que quer, fazendo nascer na sua vítima o sentimento de pessoa sem valor. Frequentemente culpabiliza-a por tudo o que lhe acontece: se perdeu o emprego, a culpa é dela; se está aborrecido, a culpa é dela; se os filhos andam mal na escola, a culpa é dela; se não é bem sucedido na vida, a culpa é sempre dela. Pelo meio, expressa-se com violência, de forma gratuita e vã enquanto ainda exige sorrisos e boa disposição todos os dias quando chega a casa... Vê-lhe apenas obrigações sem direitos e não perde uma oportunidade de apontar falhas ignorando por completo o elogio quando ela o merece. Não se interessa pelos seus sentimentos nem deixa que fale neles. Não entende a tristeza da vítima nem lhe admite lágrimas. Afinal de que se queixa ela se ele só  está a reagir assim por aquilo que ela não lhe dá? Para o agressor, tudo nela  é irritante e motivo de discussão: ou porque conversa demais, ou porque conversa de menos; ou porque se exprime demais, ou porque se exprime de menos; ou tem iniciativas de mais, ou iniciativas de menos... Sempre assim. Irrita-se facilmente quando ela fala ou faz algo por muito inocente que seja. Corta a palavra ao meio, levanta-se da mesa abruptamente, atira objectos contra as paredes, bate as portas com violência pontapeando tudo o que se atravessa na frente. Responde com atitudes violentas à irritabilidade que ela lhe provoca. A agressividade é quase diária sem motivo aparente. E a vida passa a ser como um jogo de poker: nunca sabemos qual a cartada seguinte que vai ser jogada... Não se importa que ela vá mal vestida ou mal cuidada para o trabalho mas ai dela se ousar um dia colocar um pouco de batom antes de sair. Logo lhe inventará amantes escondidos à espera dela ao sair do trabalho. E basta uns minutos de atraso para que lhe massacre violentamente a mente com comentários maldosos e sinuosos de sexo fora de casa. Por isso frequentemente lhe exigirá bom sexo como prova de amor e de fidelidade.  E se nada corresponder ao esperado rebentará de raiva como se estivesse a ser traído. Pouco se importa se as razões da vítima são a falta de mimo, atenção e apreço e que com esse défice não se consiga entregar como gostaria. Em contrapartida, ele terá muitos affairs fora do casamento que ele justificará como inevitáveis pela falta de atenção que ela lhe dá. Do ponto de vista do agressor, ele não é culpado de nada. E se a vítima não corresponde é porque não o ama. Na verdade, são abundantes as vezes que lhe repete essa tão desejada palavra. Quase com a mesma frequência com que a violenta, repete-lhe que é a mulher da vida dele e que não vive sem ela.  É o paradoxo em pessoa confundindo a sua vítima e prolongando assim uma relação que sem isso já teria morrido há muito tempo. 

Pelo caminho fica uma mulher totalmente destruída, castrada de vida e sentimentos, manipulada e controlada até ao limite, aprisionada a uma relação mortífera sem o saber. Ama o homem que conheceu, acredita que ele continua ali, mas desculpa-o constantemente por acreditar ou querer acreditar que tudo não passa de uma má fase, de um feitio difícil originado por qualquer trauma de vida. 

Fui vítima de violência psicológica. E  apesar de já terem decorrido 24 anos desde que fugi do meu agressor, as marcas que me deixou continuam abertas. Jamais me vou esquecer do quanto ele me aprisionou impedindo-me de voar, de ser "eu". Confinada a viver dentro de uma "caixa" cuja chave só ele tinha, tudo me era imposto: a forma de falar, de agir, de vestir, de viver... Não me esqueço das humilhações na frente de todos, em qualquer lugar, em qualquer momento. Dos choros constantes. Dos sorrisos ausentes. Da dureza de viver. Era manipulada para não ser nada, eternizando uma frase que eu dizia constantemente: "Para ti sou menos que um bibelo..." Quando o deixei no meio de uma coragem sem igual, renasci. Ao ponto de me tornar irreconhecível aos olhos de quem me viu.

Pôr um basta numa relação destas não é fácil. Mas também não é impossível. Exige muita coragem mas sobretudo muita determinação. Há que ter presente que o agressor não vai desistir facilmente e que não aceitará um "não quero mais" com leveza. Usará de maior violência para exercer o seu sentimento de posse de coisa que ele pensa ser sua. Mas no fim, por muito machucada que saia, ficará feliz por ter sobrevivido e verá que a vida, mesmo sozinha, é bela. Aprenderá que o amor maior é o seu por si e que por nada deste mundo deverá permitir que o destruam.


   

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

DIÁRIO DE UMA MEMÓRIA PERDIDA - O "BICICLETA"


Certo dia, o meu avô, sabendo que tinha levado a bicicleta do meu pai quando este imigrara, resolveu há uns anos, dar-lhe a sua. Agradecido, e apesar de já não precisar de nenhuma, meu pai informou que um dia lá passaria para a buscar. O irmão do meio, já grandemente conhecedor dos temperamentos que inundavam do outro lado da família, bem o alertou para que  fosse o quanto antes. Mas meu pai desdramatizou respondendo que seria muito absurdo alguém se interessar por uma bicicleta que lhe tinha sido justamente oferecida... Mas enganou-se. A irmã mais velha, assim que soube da oferta, insurgiu-se veemente junto do pai demonstrando todo o desagrado por esta decisão! Afinal, se o meu avô tinha uma bicicleta porque razão teria ela de ir parar às mãos do meu pai e não ás dela? O facto tornou-se ainda mais caricato quando meu pai decidiu finalmente ir buscá-la. Quando lá chegou, já a irmã a tinha levado...

O caso passou a ser motivo de risota e divertidos, meu pai e meu tio acabaram por lhes por carinhosamente a alcunha de "os bicicleta". 

Resolvi contar esta história porque ela revela tudo aquilo que eu tenho vindo a dizer em relação à hipocrisia instalada dentro da família paterna. Na verdade todos se debatem em afirmar que não são a origem dos conflitos. Que são boas pessoas. Que amam o meu pai profundamente. Mas assim que contamos pequenos trechos passados percebemos a mesquinhez das palavras. Os "bicicleta" não protagonizaram só este episódio. Há uns anos, já no período da doença do meu pai, eles fizeram vista grossa assim que avistaram meus pais num restaurante. Minha mãe fazendo ver que tinha percebido o gesto, levantou-se e foi cumprimentá-los à força mostrando que não valia a pena tentar ignorá-los. Apanhados de surpresa, foram cordiais e acabaram por os convidar a passar na sua casa. Pois é. O convite foi feito e até caiu bem. O problema foi abrirem a porta. A minha mãe à hora combinada estava lá. Tocou diversas vezes à campainha. Ninguém atendeu. O vizinho, no intuito de ajudar, informa meus pais que eles acabavam de entrar há minutos, logo estariam em casa de certeza. Perante tal afirmação, minha mãe incrédula, desce o caminho querendo confirmar a todo o custo que ele se tinha enganado. Mas depressa avistou a traseira do carro estacionado na garagem... 

E depressa também, percebeu que tinha sido enganada...